"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A vida no Brasil independente

Vista do Largo da Saúde, Almiro Reis

* O Rio de Janeiro, capital do Império. O Rio de Janeiro, como capital do Brasil e centro da vida política, econômica e social foi, durante todo o Império, a cidade mais importante do país.

O bem-estar que surgira com a vinda da Família Real portuguesa continuou aumentando, favorecido pelos lucros de um comércio ativo com a Europa. A vida da cidade foi aos poucos mudando de aspecto: tornou-se mais movimentada, menos provinciana, mais semelhante à vida em uma capital europeia. A grande influência francesa acentuou-se cada vez mais no século XIX: francesa era a maneira de vestir das mulheres, franceses os autores dos livros mais lidos, francesas as músicas dançadas em festas e em bailes, francês o idioma estrangeiro ensinado em primeiro lugar nas melhores escolas.

Começaram a aparecer transportes públicos já em uso na Europa, como ônibus e bondes puxados a burros; e lampeões a gás nas ruas principais vieram dar um ar moderno à cidade. Multiplicaram-se os espetáculos teatrais; estrangeiros de renome foram contratados para temporadas de ópera. Saraus musicais de canto e piano em casas de amigos e conhecidos tornaram-se frequentes; por ocasião de aniversários e de batizados davam-se festas que terminavam sempre com jogos e danças, Os almoços domingueiros reuniam todos os parentes, pais e avós, filhos e netos.

As mulheres, que durante o período colonial haviam vivido quase que exclusivamente dentro de casa, começaram a gozar a vida ao ar livre. Veraneavam na Tijuca, em Petrópolis ou em Nova Friburgo, participavam de passeios a pé, de barco ou a cavalo, assistiam a regatas, e tomavam banho de mar na praia do Flamengo. O banho de mar era tomado de novembro a março, bem cedinho, antes do sol nascer; filas de homens, mulheres e crianças desciam à praia, acompanhadas de seus escravos, que armavam na areia as barracas onde as senhoras trocavam de roupa. Entravam na água em grupos de mãos dadas, com medo de serem derrubados pelas ondas. Logo que o sol aparecia, a praia se esvaziava por completo, e começava, nas ruas, o movimento dos leiteiros, das quitandeiras, dos escravos, que iam fazer compras no mercado, entregar encomendas ou levar recados.

Os leiteiros, quase sempre portugueses vindos dos Açores, seguiam pelas ruas tocando uma vaca e seu bezerrinho; e vendiam de porta em porta o leite tirado na hora. As quitandeiras ofereciam, em cestas e tabuleiros, verduras, frutas, doces e até brinquedos para as crianças. Maiores quantidades de gêneros alimentícios encontravam-se no mercado: peixes, carnes, galinhas, ovos, verduras e as frutas mais variadas da terra: laranjas, limões, abacaxis, bananas, mangas, frutas-do-conde, mamões, goiabas, araçás, cajus.

Vendedores ambulantes, seguidos de escravos com grandes caixas na cabeça, iam de casa em casa vendendo roupas estrangeiras, tecidos, fitas, rendas. Era em casa que as mulheres preferiam escolher as peças de vestuário, pedindo às lojas que lhes enviassem suas mercadorias para uma escolha mais à vontade.

As ruas onde funcionavam as principais lojas e onde se discutiam negócios eram de muito movimento. Antes de serem pavimentadas, ficavam cheias de água e de lama, nos dias de chuva, e as pessoas as atravessavam de um lado para outro carregadas às costas dos muitos negros que, postados às portas das casas, esperavam essa oportunidade para ganhar um dinheirinho.

Na época do carnaval a cidade inteira se animava, festejando o entrudo, como eram chamados antigamente os três dias que precediam a quaresma. Até meados do século XIX, o entrudo consistia em batalhas entre os foliões nas ruas e até mesmo dentro das casas, atirando-se bolinhas de cera cheias de água, às vezes perfumada, chamadas limões de cheiro. Outros foliões recorriam a bacias e a baldes para lançar água, até todos ficarem ensopados. A polícia acabou proibindo esse tipo de brincadeira e foi surgindo um carnaval diferente, com confetes e serpentinas, lança-perfumes, fantasias, cordões e desfiles.

O Rio de Janeiro, como cidade mais moderna, com sua intensa vida social e cultural, tornou-se modelo para outras capitais do país.

* São Luís do Maranhão. São Luís do Maranhão impressionou vários viajantes estrangeiros do século XIX pela sua limpeza, sua população agradável e simpática, sua sociedade fina e educada. Cidade próspera, muito bem construída, nela residiam ricos comerciantes e grandes proprietários de plantações e fazendas, cujos filhos frequentemente iam estudar na Europa. São famosos os sobrados de São Luís, dispostos ao longo de íngremes ladeiras, com suas paredes espessas, construídas de pedra e cal, revestidos de belos azulejos portugueses. Por causa das ladeiras não havia muitas carruagens naquela época e o transporte usual, para as mulheres, era a rede, carregada aos ombros dos escravos. Era assim que iam à missa, faziam visitas ou davam seu passeio costumeiro pela cidade.

* Belém do Pará. Em meados do século XIX Belém do Pará teve suas ruas alargadas, macadamizadas e bem iluminadas, e o conforto na cidade aumentou consideravelmente. Para substituir o transporte em redes, usado até então, introduziram-se veículos puxados a cavalo, que levavam as famílias às visitas e aos passeios domingueiros. Mas se a rede deixou de ser usada nas ruas como transporte, continuou servindo nas casas para que nelas as pessoas descansassem ou dormissem. Por causa do calor, quase todas as residências tinham varanda, muitas vezes rodeando a casa, e algumas habitações apresentavam também varanda interna, onde sempre se encontravam numerosas redes acolhedoras. Como em Belém havia poucos chafarizes, o abastecimento de água da cidade fazia-se em grandes pipas, transportadas por mais de duzentos carros de boi, o que na época representava sinal de evidente progresso. Havia também guardas que faziam a ronda, policiando a cidade à noite, e o dia era anunciado com o repicar dos sinos e descarga de foguetes.

* Recife. Recife, importante núcleo econômico desde os tempos coloniais, modernizou-se durante o Império, mas conservou, na zona comercial, os sobrados típicos da velha cidade, casarões de mais de cinco andares; no térreo encontrava-se o armazém, onde à noite dormiam os empregados; no primeiro andar os escritórios da firma; no segundo e terceiro as salas de estar e os quartos de dormir;no quarto a sala de jantar, e no quinto a cozinha. No topo desses casarões havia ainda um observatório com vista em todas as direções, dominando o mar. Tão destacada era a importância das grandes firmas comerciais do Recife que muitos rapazes do Sul eram para lá mandados, a fim de aprenderem a ser homens de negócios.

Os divertimentos da cidade, além de festas religiosas e procissões, não eram muitos. Grandes bailes, festejos por dias a fio eram dados nos engenhos ou nas casas de veraneio. Recife só conheceu maior movimentação na cidade quando os estudantes da Faculdade de Direito começaram a organizar conferências, espetáculos teatrais, formaturas com bailes, saraus literários, e a percorrer as ruas fazendo românticas serenatas.

* Salvador. Salvador sempre se destacou como uma das cidades mais pitorescas e atraentes do Brasil; seu povo permaneceu extremamente alegre, comunicativo e hospitaleiro; sua sociedade era das mais refinadas, segundo moldes de Londres e de Paris. Durante muito tempo todo o transporte fez-se por escravos, pois as múltiplas e íngremes ladeiras da cidade não permitiam o trânsito de veículos, nem mesmo de pequenas carretas. Para o transporte de pessoas, que não possuíam condução própria, havia nas esquinas principais longa fileira de cadeirinhas acortinadas. As mercadorias mais pesadas eram transportadas por grupos de escravos, aos pares, quatro, seis ou oito, conforme o peso da carga, suspensa entre eles por fortes varapaus. Também toda a água necessária era carregada por escravos, que iam e vinham subindo e descendo ladeiras. Esse fornecimento era difícil, só melhorando com a instalação de modernos motores a vapor, para bombear a água potável.


Rua Direita, Rio de Janeiro, Félix Émile Taunay

* São Paulo. Em contraste com essas capitais da orla marítima, São Paulo, economicamente pobre, vivera em isolamento, retraída e fechada durante todo o período colonial. No início do Império, só os estudantes de Direito conseguiram dar certa animação à cidade. Nenhuma festa paulistana tinha graça sem a presença dos estudantes. Eram eles que animavam os poucos bailes e espetáculos teatrais, que espalhavam alegria pelas ruas do centro, fazendo brincadeiras e serenatas, que divertiam moradores de bairros e arrabaldes com seus passeios a pé e a cavalo, seus mergulhos nas águas do Tamanduateí.

Quando chegava a época das férias, São Paulo voltava a ser triste e monótona. As ruas viviam vazias, pois as famílias só saíam para visitas, guardadas por seus chefes, como era costume em todas as cidades do interior do Brasil.

Em meados do século XIX, porém, vários fatores fizeram a cidade e a província progredirem consideravelmente: o início da expansão cafeeira em terras paulistas, a criação de pequenas indústrias, a abertura de estradas de ferro e o aumento sensível da população. Tudo isso concorreu para enriquecer a cidade, permitindo introduzir grandes melhorias. Ruas e praças foram sendo alargadas, pavimentadas, arborizadas. Junto às velhas e rudes casas térreas, de porta e janela, começaram a erguer-se pequenos sobrados com largos beirais e balcões de ferro. Alguns fazendeiros transferiram-se para a capital, construindo belos palacetes, rodeados de jardins. A fim de ampliar o centro da cidade, antigas chácaras foram retalhadas, surgindo novas ruas, praças e residências. Instalaram-se lampeões a gás e organizaram-se os primeiros serviços de transporte público: carros de aluguel, puxados a cavalo, estacionados no centro. O trânsito da cidade aumentou tanto que já na segunda metade do século XIX pensou-se em sinalizar as ruas para indicar as vias de mão única.

O comércio paulista progredira muito; nas lojas da cidade encontravam-se artigos finos, até então encomendados no Rio de Janeiro. Já existiam lojas francesas de modas, de perfumes, de relógios e de objetos de luxo, cabeleireiros e barbeiros.

O abastecimento de gêneros alimentícios, comparado com o de outras capitais, era farto, devido à localização da cidade em meio a numerosas chácaras, sítios e fazendas. Já muito antes São Paulo contava com bom fornecimento de arroz, feijão, milho, legumes, verduras, frutas e peixes de água doce, pescados no Tietê. Os gêneros eram ou vendidos em mercados e quitandas ou oferecidos de porta em porta.

Por toda parte viam-se pretas quituteiras vendendo doces e salgados, biscoitos, pamonhas, bolinhos de milho e de mandioca, pastéis, empadas, cuscus, dispostos sobre tabuleiros cobertos de toalhinhas brancas. As bebidas populares mais comuns, antes da grande aceitação do café, eram o chá preto vindo da Ásia, mas também já cultivado nas chácaras da cidade e dos arredores, e o caldo de cana, a garapa, vendida pelas ruas em grandes potes de barro. Começaram a surgir as primeiras confeitarias, alguns restaurantes e cervejarias.

A cerveja começara a se tornar popular na segunda metade do século XIX, sendo fabricada em São Paulo por imigrantes alemães. Nessa época, alemães e franceses montaram pequenas indústrias, entre as quais fábricas de licores, de vinagre, de chapéus, couros e arreios.

No último quartel do século XIX novas fábricas se instalaram, quando a estrada de ferro ligou a cidade ao porto de Santos, ao interior e à capital do Império, e quando a produção de café, do centro e do oeste paulista, deu a São Paulo uma riqueza até então desconhecida. Principiou aí o desenvolvimento da indústria paulista, com fundições, serralherias, serarias, fábricas de móveis, de carroças e carruagens, de massas alimentícias. Essas fábricas foram-se localizando próximas às vias férreas e determinaram o aparecimento de grandes bairros industriais: Ipiranga, Brás, Moóca, Pari, Barra Funda, Água Branca.

Ao mesmo tempo estendiam-se as zonas exclusivamente residenciais; com a abolição da escravatura grande número de fazendeiros veio residir em São Paulo, construindo luxuosas residências em novos bairros elegantes da época, como Higienópolis, enquanto os comerciantes e os industriais começavam a construir na recém-aberta avenida Paulista.

A paisagem urbana passou por enorme transformação; mais ruas, largos, praças foram abertas, pavimentadas e arborizadas. As chácaras do centro foram desaparecendo. A cidade desenvolvia-se de modo tão rápido que os planos de urbanização não conseguiam acompanhar seu crescimento. Com a entrada de imigrantes em larga escala, e com o aumento da população foram sendo demolidas as velhas casas, surgindo em seu lugar novas habitações dos mais diversos tipos, inspiradas em estilos europeus: palacetes italianos, chalés alemães e suíços, casas normandas. As mais ricas residências distinguiam-se por jardins belíssimos, com plantas e flores nacionais e estrangeiras. No início do século XX apareceu no centro de São Paulo o primeiro edifício de cimento armado, com três pavimentos, o andar térreo destinado a lojas comerciais, protegidas por portas de aço.

Nessa época as lojas da cidade tinham ganho outra animação, com a frequência de mulheres fazendo suas compras sozinhas. A vida social em São Paulo intensificou-se. Após a proibição dos mergulhos no Tamanduateí e o aparecimento de clubes de natação e regatas às margens do Tietê, o esporte tomou impulso. Por influência dos ingleses, foi introduzido o futebol, logo entusiasmando a população; apareceram as primeiras quadras de tênis e de bola-ao-cesto, e ganharam destaque as corridas de cavalos, em hipódromos recém-construídos. Aos domingos a principal distração do povo era ir passear no jardim do Ipiranga, onde se divertia andando de carrossel, assistindo a teatrinhos de bonecos, participando de uma quantidade de jogos e competições. Ia-se a piqueniques, a sessões de circo, a concertos de bandas no coreto do Jardim da Luz, a reuniões dançantes em clubes recreativos, a espetáculos de teatro, de óperas, de operetas.

Como em todas as cidades do Brasil, havia o famoso footing, passeio a pé, numa rua ou, numa praça - moças de um lado, rapazes do outro - trocando olhares, sorrisos, bilhetinhos. Foram célebres no passado os footings da rua XV de Novembro e da rua Direita. Várias confeitarias haviam-se tornado muito conhecidas, sendo ponto de reunião obrigatória para famílias inteiras, que lá iam tomar sorvetes, saborear doces e ouvir sua orquestra. Os frequentadores de teatro movimentavam à noite os restaurantes e os cafés, onde tomavam refrescos ou ceavam após os espetáculos. As livrarias mais importantes transformaram-se em local de encontro de escritores, jornalistas e estudantes, para gostosos bate-papos, comentários políticos e larga troca de ideias.

O progresso aumentou dia a dia quando novos hábitos e costumes, trazidos por onda crescente de imigrantes, vieram influenciar a vida paulista, tornando São Paulo o modelo de cidade dinâmica e cosmopolita, em contínua expansão.

Após a primeira guerra mundial, as diferenças entre as capitais brasileiras foram progressivamente diminuindo, e a influência de outras culturas se fez sentir. Permaneceu a influência francesa ditando os requintes da moda, mantendo o hábito de encontros em confeitarias, cafés, livrarias e de ceias após os espetáculos de teatro. Surgiram a influência italiana e a alemã, modificando o gosto alimentar dos brasileiros, notadamente do Sul; a influência inglesa com a difusão do esporte e a norte-americana com sua música popular e seu cinema, uma das diversões preferidas a partir da década de 1920.

Ao terminar a segunda guerra mundial, as mudanças em nossos hábitos e costumes foram consideráveis, refletindo as transformações que se operaram no mundo todo. E os jornais, as revistas, o rádio, a televisão, estabelecendo contato dentro do próprio país, e com o exterior, permitiram às diversas populações brasileiras participarem do progresso, todas juntas, conservando, porém, aquelas características que lhes dão um cunho e um encanto próprios.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: da independência aos nossos dias. São Paulo: Nacional, 1980.

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