"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 6 de março de 2011

O papel da cultura nas mudanças

Caricatura: Ditadura militar. Da esquerda para a direita: Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo

Toda ditadura começa a ser destruída no momento em que o povo, operário, camponês, mineiro, empregado, funcionário, faz uma piada sobre o ditador. Cartunistas como Quino, Rius e Millôr Fernandes, entre muitos outros, expressam também a irreverência e a sátira da sabedoria popular latino-americana: carnavalizam qualquer tirania. A piada é uma fantasia popular. Pode ser uma evasão, mas não é uma evasão inocente. Expressa também um reconhecimento que põe em causa, protesta, nega. O humor gera o riso e solapa a pretensa seriedade e eternidade da mais poderosa tirania. O riso significa a negação do governante e da forma do seu governo. Pela sátira, o povo transforma o tirano e os seus comparsas em personagens, caricaturas, fantoches.

A tirania que aparece na obra de arte mural-romance, peça de teatro, poesia - entra na categoria do mágico, maravilhoso, paródico, grotesco. Ao mesmo tempo que tem muito a ver com o real vivido, histórico, tem muito a ver com a invenção ou a fantasia do artista. No limite, as tiranias criadas por Astúrias, Roa Bastos, García Marquez, Carpentier e Viana Filho são invenções. Não têm nada a ver com o real, na medida em que o real vivido, histórico, não está mais ali. Parece que está, mas não está. É apenas a ilusão da aparência. São citações, jogos, artifícios e artimanhas que os autores assinalam para ajudar a iludir o leitor. São invenções literárias, liberdades poéticas, criações da linguagem.

Mas há um largo intercâmbio entre as línguas e as relações sociais, as condições de existência e consciência, a produção material e espiritual. A língua aparece como produto e condição das relações de dependência recíproca e antagonismo. A linguagem é tão antiga quanto a consciência - a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com os outros homens. Nesse sentido é que a invenção do artista pode ser a revelação do segredo do real, da história.

Os próprios escritores, aliás, reconhecem que a sua invenção guarda ou recria a fantasia das gentes. O modo de fabular do índio e negro, ou camponês e operário, pode estar presente no modo de fabular do escritor. Um ressoa no outro. Carpentier indica algo nesse sentido quando escreve: "Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário ter fé. Aqueles que não acreditam em santos não se podem curar com milagres de santos..." Asturias, a partir da forte presença indígena na cultura da Guatemala, observa que o índio tem a faculdade de "criar uma realidade que é mais real do que a própria realidade". E acrescenta: "Creio que esse realismo mágico está muito ligado ao popular, ao americano, ao mais íntimo de nosso pensamento: a possibilidade das duas dimensões, a do sonho e a da realidade que, mescladas, nos dão a super-realidade". Para Roa Bastos, a literatura autêntica surge "quando o escritor submerge nas vigorosas reivindicações de um povo que está, não carente de uma cultura própria, mas negado e marginalizado pela 'cultura' dominante".

O Senhor Presidente, Patriarca, Primeiro Magistrado, Supremo, Benfeitor, Superúnico, Generalíssimo, aparece traiçoeiro e feroz, ao mesmo tempo que equívoco e simulacro. É parodiado pelos seus auxiliares, o criado, o povo. Da mesma forma que é todo-poderoso, também é ambíguo, inseguro, covarde. Representa-se, antes do que é, constrói-se cotidianamente, numa espécie de faina sem-fim, para assegurar-se de ser o que o povo nega cotidianamente. É espelho do que se espelha, inspirado na visão do mundo do homem do povo, e trabalhando essa matéria com engenho e arte, o escritor desenha a figura em que se revela a caricatura. Ao recriar o real, ao fantasiar inclusive as minúcias e os poros desse real, o escritor desvenda as contrariedades do que é. O tirano aparece como invenção de si mesmo. Aparece como se fora na invenção popular, do trabalhador, camponês, mineiro, operário, empregado, funcionário. Essa é uma das formas pelas quais a sabedoria popular alcança o governo, a tirania, o Estado burguês. Ao inspirar a carnavalização cultural que o escritor trabalha, o povo trabalha a carnavalização do ditador e da ditadura. Em forma cultural, o artista recria e destrói a tirania, com base na matéria de criação trabalhada pelo movimento popular. "Faz tempo que o homem procura libertar-se da alienação pela cultura e a arte". Ao imaginar o presente sob outra forma, a cultura e a arte realizam uma espécie de invenção do devir.

IANNI, Octávio. Revolução e Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 100-104. (Retratos do Brasil, 163).

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