"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A América no século XIX: "A profecia do libertador"

Retrato eqüestre de Bolívar, 1888. Arturo Michelena.

"Peruanos! Sede pacientes, e esperai tudo de nossos invictos irmãos de armas, porque eles não contam com uma sorte cega como os espanhóis, mas sim com sua força. O campo de batalha dirá a quem pertence o Peru, se aos filhos do acaso ou aos filhos da glória." (Proclamação de Bolívar aos peruanos, 1824)

"Eu venho pôr termo a essa época de dor e humilhação: este é o voto do Exército Libertador, que tenho a glória de comandar e que me tem acompanhado sempre ao campo de batalha, ansioso de selar com seu sangue a liberdade do Novo Mundo. Confiai na minha palavra e na resolução dos bravos que me seguem, assim como eu confio nos sentimentos e na energia do povo peruano." (Discurso de San Martín aos peruanos, 1820)


As áreas colonizadas pelos espanhóis na América constituíam no final do século XVIII quatro vice-reinos e quatro capitanias gerais. Enquanto isto, a área colonizada pelos portugueses nas Américas era constituída unicamente pelo vice-reino do Brasil.

A América colonial espanhola já era muito dividida e, quando se libertou, desmembrou-se mais ainda. A América colonial portuguesa era unificada e, quando se tornou independente, assim se manteve.

A independência política não alterou imediatamente o atraso em que se encontravam as antigas colônias.

Certamente, houve na América espanhola independente pessoas que perceberam que o desmembramento não seria conveniente para as regiões que se libertavam.

Uma das pessoas que combateu a exagerada divisão política foi Simon Bolivar¹ ².

As ideias de Simón Bolívar tiveram alguns êxitos temporários. De 1821 até 1830, existiu a Grã-Colômbia, que se desmembrou na Venezuela, na Colômbia e no Equador. Em 1823, Honduras, Costa Rica, El Salvador e Nicarágua constituíram as Províncias Unidas do Centro da América, que logo se separaram. Entre 1835 e 1839, o Peru e a Bolívia tentaram unir-se.

Pouco antes de morrer, prevendo que as disputas pelo poder político nas jovens repúblicas impediriam a cooperação e a unidade tão desejadas, Simón Bolívar profetizou que - "...muitos tiranos, chefes de governo com todo o poder, pisariam o seu túmulo."

Após 1830, na América espanhola independente, o barrete seria disputado por vários tiranos: os caudilhos.

"Ainda que muitas vezes o caudilho fosse um grande fazendeiro, pela sua vida rude, pelas suas qualidades pessoais de coragem e destreza, confundia-se muito com seus seguidores, aos quais, no entanto, tratava com indiscutível autoridade. Os caudilhos representavam sempre interesses regionais e, portanto, eram, em sua grande maioria, ardorosos defensores do federalismo como forma de organização política." (PRADO, Maria Lígia. A formação das nações latino-americanas. São Paulo: Atual, 1985. p. 38)

"El caudillo" em espanhol ou castelhano quer dizer "El jefe" (o chefe), ou "el patrón" (o patrão).

Os chefes "criollos" que lutaram contra os espanhóis na América eram em geral fazendeiros (haciendeiros). Proprietários de extensas terras, usavam o seu prestígio e a sua riqueza para dominar as províncias - regiões que hoje em dia se poderiam.) chamar de Estados. A base do seu poder estava, pois, no interior do país. Não admitiam discussão de sua autoridade. Daí serem chamados de caudilhos.

Mas como os caudilhos alcançaram o poder?

Quando os espanhóis foram expulsos, as antigas colônias viram-se numa situação de desordem.

Vinte anos de guerra haviam matado muitos negros, índios e mestiços. Eles eram essenciais na agricultura, na pecuária e na mineração. Os ingleses e norte-americanos dominavam o comércio. Os produtos estrangeiros, mais baratos, prejudicavam a venda de produtos locais.

No ambiente de miséria, ignorância e violência que se estabeleceu, foi impossível o aparecimento de um regime democrático - isto é, do povo, pelo povo e para o povo. O poder passou, aos poucos, para aqueles que tinham mais riqueza e mais prestígio: os caudilhos. Naquela época, na América espanhola e portuguesa independentes, media-se a riqueza pela extensão e qualidade das terras e pelo número de pessoas que nelas trabalhavam.

A Igreja geralmente apoiava os caudilhos. Ela desejava a volta da tranquilidade.

Uma vez conquistado o poder e instalados na capital, os caudilhos adotavam alguns costumes da cidade. Algumas vezes trocavam o poncho pelo terno ou pela casaca. Mas continuavam com o direito de julgar o que interessava ou não ao país.

Isto tudo acontecia, geralmente, através de um regime de governo chamado ditadura, no qual todos os poderes políticos estavam sob o controle de uma só pessoa e os direitos individuais eram reduzidos.

Então a profecia do Libertador se confirmara.

Mas Simón Bolívar não teria sido também um caudilho? [...]

Retrato de Juan Manuel de Rosas, Cayetano Descalzi
[Juan Manuel de Rosas, governador de Buenos Aires, é considerado como o paradigma do caudilho]

¹ Quarenta e sete anos de existência foram-lhe suficientes. Não precisou de mais para encarnar em ação a mais formidável vontade que o continente já conheceu. Foi um meteoro, um corpo ígneo, uma inteligência multiplicada. Nos dias do Renascimento, teria sido um 'condottiere', um poeta, um homem de intensas luzes e paixões exaltadas. Não há dúvidas de que teria medido forças igualmente com papas e cardeais, com mui importantes senhoras [...]

Esse Simón Bolívar - sangue basco nas veias, talvez um pouco de africanidade - soube ser terno e feroz; poucos o superaram em elegância de espírito." (POMER, León. A jornada de Simón Bolívar. In: Folhetim. Folha de São Paulo, 24 jul. 1983. p. 8.)

² A classe dominante venezuelana apropriando-se do prestígio de que desfrutava Bolívar o elevou ao mais malto pedestal. As comparações feitas regular e continuamente entre Bolívar e os heróis da mitologia greco-romana tinham o objetivo de legitimar sua 'obra incomparável'. Criou-se o Olimpo 'criollo' no qual Simón ocupava o lugar de Júpiter. No rastro da tradição judaico-cristã, além das figuras bíblicas, era ainda comparado com Jesus Cristo. [...] Ele nascera para ser o 'libertador do continente, o criador das repúblicas americanas, o pai dos cidadãos livres'. Para tanto, 'Deus oferecera a ele todos os talentos de valor, de audácia e de perseverança incomparáveis em toda a superfície da Terra tanto no passado, como no presente e no futuro. Desse modo, o herói nacional, simples mortal, avança para o plano da deificação. Colocou-se Bolívar numa região inacessível, num alto pedestal inatingível, onde ele paira acima do bem e do mal. (PRADO, Maria Ligia Coelho. Bolívar, Bolívares. In: Folhetim. Folha de São Paulo, 24 jul. 1983. p. 11.)


"Nossa terra, vasta terra, soledades, 
Povoou-se de rumores, braços, bocas;
Uma calada sílaba ia ardendo,
Congregando a rosa clandestina, 
Até as campinas trepidarem
Recobertas de metais e galopes.

Foi dura a verdade como um arado
[...]
Pátria, nasceste dos lenhadores,
De filhos sem batizar, de carpinteiros,
Dos que deram qual uma ave estranha
Uma gota de sangue voador
E hoje duramente nascerás de novo,
Lá onde o traidor e o carcereiro
Te acreditam submersa para sempre".
"América Insurreta (1800)", Pablo Neruda


BELLOTTO, M. L.; CORRÊA, A. M. M. A América Latina de colonização espanhola. São Paulo: Hucitec-EDUSP, 1979.
MATTOS, Ilmar Rohloff de et al. Brasil, uma história dinâmica. São Paulo: Nacional, 1976.
POMER, León. A jornada de Simón Bolívar. In: Folhetim. Folha de São Paulo, 24 jul. 1983.
PRADO, Maria Ligia Coelho. Bolívar, Bolívares. In: Folhetim. Folha de São Paulo, 24 jul. 1983.
PRADO, Maria Lígia. A formação das nações latino-americanas. São Paulo: Atual, 1985.

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