"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Revolta do Quebra-Quilos (1874-1875)


Iniciada na Paraíba, na Vila de Ingá, a 31 de outubro de 1874, a Revolta logo se alastrou por outras vilas e povoados da Paraíba, estendendo-se a Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas. Somente em janeiro de 1875 as autoridades provinciais conseguiram sufocar as manifestações populares nas quatro províncias nordestinas.

Como explicar essas explosões populares?

O pano de fundo encontra-se em tradicional problema da sociedade brasileira: a questão da concentração da propriedade fundiária. Em relatório enviado à Assembleia Provincial, em 1872, o então governador da Paraíba, Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, mostrou as consequências sociais desse processo marginalizador de camponeses nordestinos:

"Realmente, há uma parte de nossa população profundamente desmoralizada, perdida até, mas resta uma grande massa, donde podem sair braços úteis. Que garantias, porém, acha esta para seus direitos, que segurança para os serviços que presta, que incentivo para preservar nas boas práticas? A constituição de nossa propriedade territorial, enfeudando vastíssimas fazendas nas mãos dos privilegiados da fortuna, só por exceção permite ao pobre a posse e o domínio de alguns palmos de terra. Em regra, ele é rendeiro, agregado, camarada ou o que quer que seja; e então a sua sorte é quase a de um antigo servo da gleba."

A essa questão somava-se a crise econômica decorrente da depreciação dos preços dos principais produtos de exportação, destacando-se o açúcar e o algodão.

A crise econômica atingia também as finanças provinciais, cuja receita caiu, ao passo que as despesas aumentavam. A multiplicação de coletorias visando racionalizar a cobrança de impostos, se por um lado aumentou a receita provincial, por outro lado agravou as condições de vida da população nordestina. Não foi por acaso que essas repartições governamentais foram alvos dos ataques de protestos dos revoltosos do Quebra-Quilos.

"As soluções emergenciais do governo para desbordar seus apertos econômicos nem sempre foram muito felizes. O Tesouro fazia empréstimos aos bancos, emitindo bilhetes, que eram simplesmente certificados de depósitos com juros, desviando-se, assim, teoricamente os recursos que poderiam servir às atividades comerciais e industriais. A crise já fazia parte da história econômica e financeira do país, não obstante os esforços, os pronunciamentos e os discursos oficiais (...) Mais papel-moeda ou novos empréstimos constituíram a angústia prometéica do Conselho de Estado para salvar o Império da bancarrota." (SOUTO MAIOR, Armando. Quebra-Quilos, lutas sociais no outono do Império. São Paulo: Nacional, 1978. p. 10)

A fome tributária do governo imperial também se ligava à necessidade de cobrir os gastos com a Guerra do Paraguai, o que agravou ainda mais a secular miséria das populações nordestinas.

Desde 1862, o governo imperial adotara o sistema métrico decimal. De acordo com a Lei nº 1157, de 1862, o sistema de pesos e medidas então vigente, "será substituído em todo o Império pelo sistema métrico francês na parte concernente às medidas lineares, de superfície, capacidade e peso". Embora fixando que a substituição fosse completada no prazo de dez anos, o Artigo 3º da Lei estabelecia a pena de prisão até um mês e a multa de 100$000.

Em consequência, tornava-se ilegal o uso de tradicionais medidas lineares (côvado, jarda e vara), além da canada e do quartilho (medidas de capacidade), do arretel, da onça e da libra (medias de volume), do alqueire, da quarta e do celamim (usados para pesar farinhas e grãos).

Em 1872, determinou-se que, a partir de 1º de julho de 1873, a legislação imperial entraria em vigor. Ainda que atenuando as multas e prisões para os infratores, a Revolta explodiu, sendo escolhidos os dias de feira para os ataques populares porque era nessa ocasião que as autoridades costumavam cobrar os impostos municipais.

"De maneira geral, os fatos ocorreram de forma idêntica. A cobrança dos impostos provocava protestos, e daí partia-se para a agressão, com a 'turba' descontente quebrando os pesos e medidas do novo sistema métrico decimal, destruindo os Arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias, Cartórios (inclusive o de registro de hipotecas) civis e criminais e até mesmo, em algumas localidades, os 'papéis' dos correios; ou então, repentinamente, a cidade ou vila era invadida por bandos de homens armados, cujo número variou de 60 a 600, que realizavam os mesmos 'feitos' (destruição dos novos padrões e incêndio dos arquivos) e partiam prometendo voltar a qualquer momento." (MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste Insurgente (1850-1890). São Paulo: Brasiliense, 1981)

Por que, então, a denominação de quebra-quilos? Ela surgiu inicialmente na cidade do Rio de Janeiro, quando elementos populares invadiram casas comerciais que haviam começado a utilizar o novo sistema de pesos e medidas. Era o ano de 1871 quando, aos gritos de "Quebra os quilos! Quebra os quilos", ocorreram as depredações dessas casas comerciais.

"A expressão passou genericamente a indicar todos os participantes dos movimentos de contestação ao governo no que diz respeito ao recrutamento militar, à cobrança de impostos e à adoção do sistema métrico decimal." (SOUTO MAIOR, Armando. op, cit., p. 56)

Segundo informações do visconde do Rio Branco ao imperador D. Pedro II, essas explosões da revolta popular eram estimuladas pelo clero, em especial os jesuítas. Essa acusação contra a perturbação da ordem nas províncias nordestinas tinha raízes na questão religiosa, envolvendo os bispos de Olinda e do Maranhão. Esses bispos estavam sendo processados porque não aceitavam determinações do governo imperial proibindo que fossem tomadas medidas contra os membros da Maçonaria. Acusou-se ainda o padre José Antônio Ibiapina, que teve marcante influência sobre Antônio Conselheiro, líder de Canudos. Buscas policiais foram realizadas no Colégio dos Jesuítas, recém-aberto em Recife, e na residência de vários padres. Nada se comprovou. Mesmo assim, vários sacerdotes foram punidos com a prisão, além de serem expulsos do país diversos jesuítas estrangeiros.

Houve também tentativas de vincular o movimento a políticos do Partido Liberal. Igualmente eram infundadas as acusações. As lideranças eram locais e não se ligavam a uma única organização partidária. Na realidade, se o poder local ou provincial estava com os liberais, os Quebra-Quilos eram adeptos do Partido Conservador.

Uma outra razão que contribuiu para a Revolta foi a nova lei de recrutamento militar. A Lei nº 2,556, de 26 de setembro de 1874, estabeleceu que o alistamento seria feito por sorteio. Todavia, declarava que ficaria isento quem pagasse uma contribuição financeira, fosse proprietário ou apresentasse um substituto. A prática seguida era substituir recrutas pertencentes às famílias dos grandes proprietários por escravos ou jagunços. Espalhou-se o boato que a lei não faria distinções entre ricos e pobres.

"Era muito para os poderosos 'senhores de homens e terras'. A atitude deles passa a ser de uma ostensiva oposição, como no caso do Tenente-Coronel Luis Paulino, fazendeiro em São Bento (...) que contratou o bando de José Cesário para ajudá-lo a se opor à nova lei (...)" (MONTEIRO, Hamilton de Mattos. op. cit., p. 52)

A acusação de ser o engajamento na vida militar um castigo tornou-se mais viva quando muitos dos revoltosos aprisionados foram incorporados ao Exército. Acreditava-se que a caserna iria tornar os punidos respeitadores da lei e da ordem.

O governo imperial deslocou forças militares para o Nordeste a fim de dominar a revolta. A repressão foi violenta, não se distinguindo culpados e inocentes. Como tem sido constante na sociedade brasileira, as questões sociais são consideradas casos de polícia.

Ainda em 1879, o deputado João Florentino afirmava:

"Fizeram-se prisões em massa, velhos e moços, solteiros, casados e viúvos, todos acorrentados e alguns metidos em coletes de couro, eram remetidos para a capital. Alguns desses infelizes, cruelmente comprimidos e quase asfixiados, caíam sem sentidos pelas estradas, deitando sangue pela boca." (ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1980. p. 219)

Como lembrança dessa repressão, no Nordeste cantava-se a seguinte modinha citada por Hamilton de Mattos Monteiro:

"Sou quebra-quilos encoletado em couro
Por vil desdouro me trouxe aqui
A bofetada minha face mancha
À corda, à prancha me afligir senti (...)
E ao quebra-quilos desonrado, louco
É tudo pouco quanto a infâmia faz;
Se aqui contempla da família o roubo,
Ali, no dobro, o flagelam mais (...)"

A propósito, colete de couro foi uma das práticas repressivas empregada para castigar os acusados de serem quebra-quilos. Consistia em colocar sobre o tórax e as costas um pedaço de couro cru; em seguida, esse couro era molhado e, ao secar, comprimia o peito violentamente. Como seqüelas podia provocar lesões cardíacas e tuberculose.

Mas também houve quadrinhas, poesias, músicas e peças teatrais ridicularizando as autoridades. Chegou-se a afirmar que até o relacionamento sexual seria tributado, após o movimento ter se diluído tanto pela repressão governamental como pela inexistência de um projeto alternativo.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 24-29.

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