"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cristianismo e humanismo clássico: visões de mundo alternativas

O cristianismo e o humanismo clássico são os dois principais componentes da tradição ocidental. O valor que a moderna civilização ocidental atribui ao indivíduo vem, em última análise, do humanismo clássico e da tradição judaico-cristã. O humanismo clássico acreditava que o valor do indivíduo vinha de sua capacidade de raciocinar, de modelar seu caráter e sua vida de acordo com padrões racionais. O cristianismo também enfatiza a importância do indivíduo. Na visão cristã, Deus se preocupa com todas as pessoas; quer que os homens se comportem bem e entrem no céu; Cristo morreu por todos porque ama a humanidade. O cristianismo defende o amor ativo e a preocupação autêntica com o próximo.

Pintura de Maria (mãe de Jesus) amamentando o menino Jesus. Imagem do século II, Catacumba de Santa Priscila, Roma.

Mas o cristianismo e o humanismo clássico também representam duas visões de mundo essencialmente diferentes. O triunfo do pensamento cristão significou um rompimento com o significado essencial do humanismo clássico; indicou o fim do mundo da Antiguidade e o início de uma idade da fé, a Idade Média. Com a vitória do cristianismo, a meta final da vida deixou de ser a realização da excelência neste mundo, pelo desenvolvimento pleno e criativo do talento humano, para ser a salvação na cidade celestial. As realizações de uma pessoas nesse mundo representavam muito pouco, se ela não aceitasse Deus e sua revelação.

Afresco da Villa dos Mistérios. Pompéia.

Na visão clássica, a história não tinha nenhum objetivo final. Os períodos de felicidade e de miséria se repetiam interminavelmente. Na visão cristã, a história era dotada de significado espiritual. Ela é o drama profundo dos homens, que lutam para superar seu pecado original a fim de conseguir a felicidade eterna nos céus. A história começou quando Adão e Eva desafiaram Deus e terminaria quanto Cristo voltasse à Terra e a vontade de Deus predominasse.

Cristo ensinando os Apóstolos, repetindo cenas pagãs de filósofos com seus alunos. Catacumba de Domitila, Roma.

O classicismo sustentava a inexistência de uma autoridade superior à razão: os indivíduos tinham dentro de si a capacidade de entender o mundo e a vida. Para o cristianismo primitivo, porém, sem Deus como ponto de partida, o conhecimento não tem forma, propósito e está sujeito ao erro. Segundo o classicismo, os padrões éticos eram leis da natureza que a razão podia descobrir. Pela razão o homem podia chegar aos valores pelos quais deveria regular sua vida. A razão permitiria ao homem governar os desejos e a vontade; mostraria a ele onde seu comportamento estava errado e lhe ensinaria a corrigi-lo. O cristianismo primitivo, por outro lado, ensinava que os padrões éticos emanavam da vontade pessoal de Deus. Sem obediência aos mandamentos de Deus, o homem continuaria para sempre mau; a vontade humana, essencialmente pecaminosa, não poderia ser transformada pela força da razão. Só quando o indivíduo se voltasse para Deus em busca de perdão e orientação - só então teria força interior para superar sua natureza pecadora. Os homens não podem se aperfeiçoar através do conhecimento científico; é a visão espiritual e a fé em Deus que devem servir como o princípio básico de suas vidas.

Hércules bêbado e Ônfale. Casa do Príncipe de Montenegro, Pompéia.

Para o classicismo, portanto, o bem final era conquistado pelo pensamento e ação independentes; para o cristianismo, o bem final vem do conhecimento, obediência e amor a Deus. No cristianismo primitivo, a felicidade não se identificava com as realizações mundanas, mas sim com a vida eterna. O objetivo central da vida deveria ser o ingresso no reino de Deus. Nos mil anos que se seguiram, essa distinção entre o céu e a terra, essa visão voltada para outro mundo, teocêntrica, definiria a mentalidade ocidental.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 141-142.

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