"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O homem medieval

As datas são uma invenção utilíssima. Não poderíamos viver sem elas, mas, se não tomarmos muito cuidado, elas podem nos enganar. Tendem a tornar a história precisa demais. Do ponto de vista do homem medieval, por exemplo, não posso afirmar que no dia 31 de dezembro de 476 todos os habitantes da Europa disseram ao mesmo tempo: "Ora, ora, o Império Romano acabou e estamos vivendo na Idade Média. Que interessante!"

Na corte franca de Carlos Magno havia homens que eram romanos nos seus hábitos, no seu comportamento e na sua forma de ver a vida. [...] Os tempos e as gerações se sobrepõem e as ideias das sucessivas gerações brincam de pega-pega. Porém, é possível estudar as ideias de um bom número de representantes legítimos da Idade Média para lhe dar uma ideia das atitudes do típico homem medieval perante a vida e as muitas dificuldades do viver.

Em primeiro lugar, lembre-se que, na Idade Média, as pessoas nunca se concebiam como cidadãos livres que podiam ir e vir à vontade e moldar o próprio destino de acordo com a própria capacidade, energia ou sorte. Muito pelo contrário, consideravam-se partes de um esquema geral de coisas que incluía imperadores e servos, papas e hereges, heróis e fanfarrões, ricos e pobres, mendigos e salteadores. Aceitavam essa divina ordenação do mundo e não faziam perguntas. [...]

Para os homens e mulheres do século XIII, a outra vida - um Paraíso de maravilhosas delícias ou um Inferno de sofrimento, fogo e enxofre - era algo mais do que uma expressão vazia ou um amontoado de confusas definições teológicas. Era uma realidade, e os burgueses e cavaleiros da Idade Média dedicavam a maior parte do seu tempo a preparar-se para essa vida futura. Para nós, modernos, uma morte tranquila depois de uma vida vivida é encarada com a silenciosa tranquilidade dos antigos gregos e romanos. [...]

Durante a Idade Média, porém, a Rainha do Terror, com sua caveira risonha e seus ossos chocalhantes, era a constante companheira do homem. Ela acordava suas vítimas com terríveis melodias arranhadas em sua rabeca, sentava-se com elas para jantar e espreitava por detrás das árvores quando um rapaz levava uma moça para passear. Se você, na infância, em vez de ouvir os contos de fadas de Andersen e dos irmãos Grimm, tivesse ouvido somente horripilantes algavarias sobre cemitérios, caixões e doenças mortais, provavelmente também passaria todos os dias de sua vida no constante temor da hora da morte e do terrível Dia do Juízo. Era exatamente isso o que acontecia com as crianças da Idade Média. Elas habitavam um mundo povoado de demônios e espectros, no qual de vez em quando aparecia um anjo. Às vezes, o medo do futuro enchia suas almas de humildade e piedade, mas no geral tinha nelas o efeito oposto e tornava-as cruéis e sentimentais. Depois de chacinar todas as mulheres e crianças de uma cidade, os homens medievais dirigiam-se cheios de devoção a algum lugar sagrado e, com as mãos tintas de sangue de vítimas inocentes, imploravam do Céu misericordioso o perdão de seus pecados. Aliás, não se militavam a rezar, choravam lágrimas amargas e confessavam-se os piores pecados. Porém, no dia seguinte, tornavam a passar a fio de espada todo um batalhão de inimigos sarracenos sem o menor sinal de misericórdia em seu coração.

 
Batalha de Hattin: cavaleiros europeus x cavaleiros muçulmanos

É certo que os cruzados eram cavaleiros e seguiam um código de comportamento um pouco diferente do dos homens comuns. Porém, nesses assuntos, os homens comuns eram idênticos a seus senhores. Assemelhavam-se igualmente a cavalos assustadiços, facilmente postos em fuga por sua sombra ou um miserável pedaço de papel, capazes de servir a outrem com a máxima fidelidade, mas capazes também de bater em retirada e cometer terríveis atrocidades quando sua imaginação febril via um fantasma.

Para julgar esses bons homens, porém, convém nos lembrarmos das terríveis desvantagens que sofriam no seu viver. Eram, na realidade, bárbaros que posavam de homens civilizados. Carlos Magno e Oto, o Grande, eram chamados "imperadores romanos", mas eram selvagens que, embora vivessem em meio a ruínas gloriosas, não partilhavam dos benefícios da civilização que seus pais e avós haviam destruído. Não sabiam absolutamente nada. Ignoravam quase todos os fatos que hoje em dia são conhecidos de qualquer criança de doze anos. Para adquirir conhecimento, eram obrigados a recorrer a um único livro: a Bíblia. Porém, as partes da Bíblia que influenciaram para melhor a história da raça humana são aqueles capítulos do Novo Testamento que nos ensinam as grandes verdades morais do amor, da caridade e do perdão. Como compêndio de astronomia, zoologia, botânica, geometria e todas as outras ciências, o livro sagrado não é totalmente confiável. No século XII, um segundo livro foi acrescentado à biblioteca medieval: a grande enciclopédia de conhecimento úteis compilada por Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C. Realmente não sei dizer por que a Igreja cristã conferiu tão grandes honras ao mestre de Alexandre Magno ao mesmo tempo em que condenava todos os demais filósofos gregos por suas doutrinas pagãs. Mas, depois da Bíblia, Aristóteles foi reconhecido como o único mestre confiável cujas obras poderiam, sem dano, ser postas nas mãos dos verdadeiros cristãos.

Suas obras chegaram à Europa por um caminho tortuoso. Da Grécia, haviam ido a Alexandria. Lá, foram traduzidas do grego para o árabe pelos maometanos que conquistaram o Egito no século VII. Entraram com os exércitos muçulmanos na Espanha, onde a filosofia do grande Estagirita (Aristóteles nasceu em Estagira, na Macedônia) era ensinada na universidade mourisca de Córdoba. O texto árabe foi então traduzido para o latim pelos estudiosos cristãos que cruzavam os Pirineus para receber uma educação liberal e foi essa viajada versão dos velhos livros que por fim passou a ser ensinada nas diversas escolas do noroeste da Europa. Não era muito clara, mas isso a deixava muito mais interessante.

Com a ajuda da Bíblia e de Aristóteles, os intelectos mais brilhantes da Idade Média puseram-se a trabalhar para explicar todas as coisas entre o céu e a terra em sua relação com a vontade manifesta de Deus. Esses homens brilhantes, os chamados escolásticos, eram de fato muito inteligentes, mas obtinham suas informações exclusivamente dos livros, nunca da observação direta. Quando queriam dar aulas sobre esturjões e taturanas, liam o Antigo Testamento, o Novo Testamento e Aristóteles e contavam a seus alunos tudo o que esses excelentes livros tinham a dizer sobre o assunto. Não se dirigiam ao rio mais próximo para pescar um esturjão; não saíam da biblioteca nem iam ao quintal para capturar algumas taturanas, examiná-las e estudá-las em seu próprio habitat. Mesmo mestres tão famosos quanto Alberto Magno e Tomás de Aquino não se perguntavam se os esturjões da Palestina e as taturanas da Macedônia não seriam porventura diferentes dos esturjões e taturanas da Europa ocidental.

Quando, vez por outra, uma pessoa excepcionalmente curiosa como Roger Bacon surgia em meio ao concílio dos sábios e começava a fazer experiências com lentes de aumento e pequenos telescópios, ou levava o esturjão e a taturana para a sala de aula e provava que eram diferentes das criaturas descritas no Antigo Testamento e nos livros de Aristóteles, os escolásticos meneavam a cabeça com tristeza. Bacon  estava indo longe demais. Já quando ele se atreveu a afirmar que uma hora de observação direta valia mais do que dez anos na companhia de Aristóteles, e que as obras do famoso grego poderiam nem sequer ter sido traduzidas, pois não haviam feito nenhum bem, os escolásticos foram à polícia e disseram: "Este homem é um perigo para a segurança do Estado. Quer que estudemos a língua grega para poder ler Aristóteles no original. Por que não está contente com nossa versão árabe-latina, que tem atendido satisfatoriamente às necessidades do povo fiel por tantos séculos? Por que demonstra tanta curiosidade pelas vísceras de peixes e dos insetos? Talvez seja um malvado feiticeiro que, com sua magia negra, pretende perturbar a ordem estabelecida." E tão bem defenderam a própria causa que os atemorizados guardiães da paz proibiram Bacon de escrever uma única palavra por mais de dez anos. Quando retomou seus estudos, Bacon havia aprendido uma lição. Passou a escrever seus livros numa estranha linguagem cifrada que impossibilitou que seus contemporâneos os entendessem - um truque que foi se tornando cada vez mais comum à medida que a Igreja foi se tornando mais violenta em sua tentativa de impedir que as pessoas fizessem perguntas que talvez conduzissem à dúvida e à infidelidade.

Essa violência, porém, não tinha por motivo um desejo maligno de deixar o povo na ignorância. O sentimento que movia os caçadores de hereges daquela época era, na realidade, um sentimento mais caridoso. Eles acreditavam firmemente - ou melhor, sabiam com certeza - que esta vida era somente um estágio de preparação para a nossa verdadeira existência no mundo futuro. Estavam convictos de que o excesso de conhecimento deixava as pessoas inquietas, enchia a mente delas de opiniões perigosas e tinha como fruto a dúvida e, por fim, a perdição. O escolástico medieval que via um de seus alunos afastar-se da autoridade revelada da Bíblia e de Aristóteles para estudar as coisas por si mesmo sentia-se tão ansioso quanto uma mãe amorosa que vê o filhinho chegar perto de um fogão aceso. [...] Do mesmo modo, na Idade Média, os guardiães das almas do povo, embora fossem rigorosos em todos os assuntos relativos à fé, labutavam noite e dia para servir da melhor maneira possível às ovelhas de seu rebanho. Estendiam as mãos em auxílio sempre que tinham a oportunidade, e a sociedade daquela época levou a marca dos milhares de homens bons e mulheres piedosas que tentavam tornar o destino dos comuns mortais tão suportável quanto possível.

Manuscrito medieval: reunião de doutores na Universidade de Paris

O servo era servo, e sua posição não mudaria jamais. Mas o bom senhor da Idade Média que permitia que o servo passasse a vida inteira na qualidade de escravo sabia que essa humilde criatura tinha uma alma imortal e que, portanto, tinha de ter os seus direitos protegidos, a fim de poder viver e morrer como um bom cristão. Quando ficava velho ou fraco demais para trabalhar, tinha de ser amparado pelo senhor feudal para quem trabalhara. Por isso, o servo, que levava uma vida melancólica e monótona, não era jamais assombrado pelo medo do amanhã. [...]

Miniatura medieval: o trabalho árduo dos servos numa herdade feudal

Esta sensação de "estabilidade" e de "segurança" estava presente em todas as classes da sociedade. Nas cidades, os comerciantes e artesãos fundavam ligas ou guildas que garantiam uma renda constante a todos os seus membros. [...]

A Idade Média não gostava da competição. Por que competir e encher o mundo de pressa, de rivalidade e de uma multidão de homens empurrando uns aos outros, se por outro lado estava próximo o Dia do Juízo, no qual as riquezas de nada valeriam e o bom servo adentraria os portais dourados do paraíso ao passo que o cavaleiro mau seria lançado para o castigo nas profundezas do inferno?

Em suma, pedia-se ao povo da Idade Média que abdicasse de uma parcela de sua liberdade de pensamento e ação a fim de gozar de uma maior segurança em relação à pobreza do corpo e a pobreza da alma.

E, com pouquíssima exceções, esse povo aceitou a proposta. Acreditavam-se firmemente que estavam apenas de passagem por este planeta - que estavam aqui para preparar-se para uma vida maior e mais importante. Deliberadamente deram as costas a um mundo repleto de sofrimento, maldade e injustiça. Fecharam as cortinas para que os raios do sol não distraíssem a sua atenção daquele capítulo do Apocalipse que lhes falava da luz celestial que os alumiaria em bem-aventurança por toda a eternidade. Procuravam fechar os olhos à maioria das alegrias do mundo em que viviam a fim de poder gozar das alegrias que os esperavam num futuro próximo. [...]

Os gregos e os romanos não se importaram com o futuro, mas tentaram estabelecer seu Paraíso aqui mesmo nesta terra. Conseguiram assim tornar a vida extremamente agradável para os homens que não tinham o azar de ser escravos. Depois veio o outro extremo, a Idade Média, em que o homem construiu um Paraíso para si acima das nuvens mais excelsas e tornou este mundo num vale de lágrimas para nobres e plebeus, ricos e pobres, inteligentes e estúpidos. Mas chegara já a hora de o pêndulo pender de novo para o outro lado...

VAN LOON, Hendrk Willem. A história da humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 193-200.

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