"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 16 de junho de 2012

Público e privado no mundo burguês da "belle époque"

"O século burguês foi uma era de melhoramentos, mais para os burgueses, talvez, do que para qualquer outro grupo de pessoas. Sua ideologia carregada de esperanças não era apenas uma máscara para encobrir o desespero, mas uma crença sincera no progresso." (GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 55.)

O Palácio de Crystal no Hyde Park foi uma imensa estrutura de ferro e vidro que abrigou a grande exposição de 1851. Ele simbolizava as glórias burguesas do progresso e da industrialização. Litografia de Louis Haghe.

A partir de 1848, uma nova era de expansão capitalista entrou em vigor. Mesmo com oscilações políticas, a sociedade europeia, desse período até a Primeira Guerra Mundial, assistiu ao triunfo dos valores burgueses. Uma minoria de países tornou-se potência industrial e lançou as bases de uma economia mundial sob sua influência. Internamente, essa expansão econômica garantiu uma alta taxa de emprego (amenizando, por certo tempo, o descontentamento popular e diminuindo os movimentos revolucionários) e uma situação mais próspera às classes médias.

Apesar de a maioria da população europeia da época se concentrar no campo, era no mundo urbano, em crescimento constante, que irradiavam novos valores sociais e formas de viver. A razão, a ciência, o progresso e a ética do trabalho tornaram-se bases sólidas dos discursos políticos e as máximas expressões de uma burguesia orgulhosa de seus sucessos. [...]

Esse foi um período de confiança no liberalismo econômico e político. À maior igualdade de direitos e oportunidades e ao governo representativo somavam-se a busca do lucro e a defesa da livre iniciativa competitiva e de sua metáfora da guerra: a luta pela existência e sobrevivência dos melhores. [...]

[...]

Como ponto mais visível, o desenvolvimento técnico e científico tornava-se a expressão simbólica e material de toda essa força econômica europeia. [...] A máquina e a produção em massa proporcionavam a vulgarização dos produtos industriais, tornando-se acessíveis a um conjunto maior da população. [...] Às locomotivas e navios a vapor juntavam-se a fotografia, o telefone, a bicicleta e, no final do século, os automóveis, o gramofone e a lâmpada elétrica. Inaugurando a era da propaganda industrial e, ao mesmo tempo, celebrando os progressos técnico e científico, a partir de 1851, grandes exposições universais de novidades industriais passaram a acontecer em diversas cidades, como Londres, Viena, Paris e Filadélfia.

Enfim, aos olhos de boa parte da sociedade, o progresso não era uma evidência apenas pela sua produção técnica. A maior produtividade no campo trouxe a melhoria da nutrição e as pesquisas científicas propiciaram avanços também no campo da saúde. Com elas, vieram o declínio da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida para muitos europeus.

No final do século, os progressos técnicos e uma relativa paz e estabilidade social marcaram uma época que ficou conhecida como Belle Époque, em que o otimismo e o luxo refletiam uma burguesia confiante em si mesma e no seu futuro.

O novo mundo burguês veio acompanhado por uma separação mais profunda entre o público e o privado. O mundo privado e a subjetividade foram consolidados por uma avalanche de diários, biografias e confissões e pelo novo "sonho de consumo" do século XIX: a possibilidade de se ter um quarto próprio. Os avanços da higiene e da medicalização da família influenciaram na distinção entre o dentro e o fora de casa e na consolidação da ideia de mundo privado do "lar, doce lar".

A moradia passou a ter um peso importante tanto como confinamento residencial e apresentação pública do status quanto como fundamento material do ideal de família. Ter uma casa com jardins, rodeada de verde e afastada do centro da cidade, tornou-se um ideal para a burguesia europeia ascendente. Internamente, os objetos e a decoração demonstravam e possibilitavam a aspiração a um lar harmonioso, cercado por símbolos de status e sucesso. Enfeites, tecidos, cortinas, almofadas, papéis de parede e, para os mais abastados, um piano e uma pequena biblioteca compunham um ambiente acolhedor. Esses objetos, somados aos novos costumes de higiene (sabonete, latrina e banheira), propiciaram algum conforto aos burgueses, segundo Eric Hobsbawn, somente no final do século.

Essa sociabilidade mais íntima dos espaços domésticos veio acompanhada por um discurso que revalorizava a família como unidade social básica. Nos discursos do século XIX, a família nuclear, que  emergia de sistemas de parentesco mais amplos, era fortalecida em sua dignidade e seu poder. Era dela que dependiam a transmissão de todo um patrimônio material e simbólico de reputação e, ao mesmo tempo, o funcionamento de toda a sociedade, pois o lar era a representação do acolhedor lugar da felicidade e da paz, em oposição à competição constante do mundo externo.

Como chave da felicidade universal e do bem público, a família foi projetada sob uma autocracia patriarcal. [...] O ideal de mulher burguesa passou a preconizar, então, um estilo de vida essencialmente doméstico, em que a feminilidade estava assentada na dependência econômica do marido.

Entretanto, foi no seio dessa mesma sociedade burguesa que os ideais de emancipação das mulheres se desenvolveram. O crescimento do planejamento familiar, com a diminuição do índice de natalidade e o aumento do espaço feminino no mercado de trabalho - em lojas, escritórios e no magistério do ensino primário -, no final do século, criou novas oportunidades para as mulheres da pequena burguesia.

Embora a condição para a maioria das mulheres não tenha mudado intensamente no século XIX, nesse período, assistiu-se aos primeiros passos do desenvolvimento do feminismo sistemático, que lutava especialmente pelos direitos de participação política. [...]

A nova realidade da família proporcionava também um investimento maior - afetivo e, principalmente, econômico e educativo - nos filhos. Com um ensino primário, financiado ou promovido pelo Estado, cada vez mais universalizado, a continuidade da educação formal tornou-se um sinal de distinção para aqueles que tinham condição de adiar a tarefa de ganhar a vida.

De fato, a educação secundária e, depois, a universitária cresceram rapidamente entre a classe média e o grau de instrução somava-se à prática do esporte, às ligações sociais e às propriedades como mais um fator de diferenciação em tempos de direitos iguais perante a lei.

MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 37-39.

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