"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O conhecimento sobre a mulher produzido pela Igreja medieval

A doutrina da Igreja medieval sobre o casamento estava assentada sobre um saber produzido pelos seus membros ao longo da história da instituição.


Mulher engravida do próprio irmão. Iluminura medieval

A renovação católica iniciada com o papa Urbano II, no final do século XI, produziu uma atualização dos discursos sobre a mulher. Do final do século XII ao final do século XV os textos que tratavam da mulher, do casamento e da sexualidade se multiplicaram. Isso revelava a necessidade que os homens da Igreja sentiram de impor valores e modelos de comportamento à mulher.


Mulher tem três filhos do próprio tio. Iluminura medieval

Na nova economia que se esboçava nessa época, principalmente com o crescimento do comércio e da vida urbana, as mulheres participavam como produtoras e vendedoras de bens, mas a concepção de seus papéis - como os de mães, filhas e esposas - continuava imutável. Definir claramente esses papéis foi um dos objetivos principais dos homens da Igreja. Eles estavam empenhados em restituir a palavra de Deus, vale dizer, a autoridade do clero, onde ela se achava ameaçada. Uma forma de ociosidade intelectual e moral, que emanava principalmente das cidades, preocupava os pregadores.


Mulher engravida do eremita. Iluminura medieval

Os autores desses discursos sobre e para as mulheres são, principalmente, os homens da Igreja, mas não se identifica claramente quem são as destinatárias (as camponesas ou as habitantes da cidade). Aparentemente esses discursos são dirigidos a todas as mulheres, não importando a posição social, mas nota-se um esforço de classificação ao qual não estavam acostumados. Houve, portanto, uma passagem dos discursos à mulher para os dirigidos às mulheres.


Abadessa entrega criança após o parto. Iluminura medieval

A tentativa de classificação oscilava entre a categoria social, o tipo de atividade, a idade, entre outros requisitos. Assim temos as virgens, as casadas e as viúvas; as esposas e as mães; as monjas e as servas; as moças, as mulheres jovens, as de meia-idade e as velhas; as mulheres pobres e as meretrizes.


Mulher com criança amaldiçoada. Iluminura medieval

Os discursos têm como eixo a oposição entre o que as mulheres eram e o que elas deveriam ser. Não podemos esquecer que são discursos de clérigos. Além de serem homens discutindo sobre a condição feminina, eram também homens que estavam submetidos às regras do celibato e da castidade. Tendiam a ser tanto mais severos na censura da sexualidade, principalmente da feminina, quanto mais dela estivessem apartados.


Na Idade Média, acreditava-se na explicação religiosa para a criação da mulher, ou seja, que ela teria sido criada por Deus a partir de uma costela de Adão. Iluminura do século XIV

As mulheres das categorias sociais superiores seriam portadoras, ou deveriam ser, de valores mais elevados. Esperava-se que elas servissem de exemplo para as camadas subalternas e tomassem consciência dos seus altos deveres como nobres. As mulheres pertencentes às classes mais baixas foram vítimas das principais condenações morais nestes discursos.


Iluminura do século XV mostra mulher nobre escrevendo. Independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico

Quando a mulher é referida sem a identificação do grupo social a qual pertence, aparece como uma criatura de extremos entre o bem e o mal: é a filha de Eva ou a virgem que imita Maria.


Tortura: queima de bruxas e prisioneiras. Miniatura do século XIV.

Mas, independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico. A única que não pertence a ele é a meretriz, a qual só resta o arrependimento e a penitência.


Funeral de Anne de Bohemia. Miniatura. Cerca de 1483

Os textos mais impressionantes são os que falam sobre as mulheres e não para elas. Eles demonstram claramente o grande medo que elas despertavam. O medo da mulher é uma das principais características do pensamento medieval. Ele demandava por parte dos homens a imposição de um severo controle sobre as mulheres. Controlá-las e castigá-las era uma tarefa dos homens.


História de amor sem palavras. Jean Louise observa em um jardim. Miniatura do século XVI

Como há um predomínio do espírito sobre a carne, a pureza seria mais de pensamento do que do corpo, mas, na hierarquia da castidade, a virgem de corpo tem a primazia. Foram estabelecidos, então, três graus possíveis de castidade, de virtude e de perfeição. O ideal de mulher é a virgem que renuncia para sempre ao sexo. As viúvas que renunciam a ele por haverem perdido o marido e não se casam estão em um segundo plano. As casadas, que usam o sexo de forma casta e parcimoniosa com a finalidade de procriação, estão em terceiro lugar na escala dos méritos. A castidade vale mais do que a continência.


Casamento de Charles IV e Marie Luxemburgo. Miniatura, cerca de 1400

O convívio social seria, portanto, nocivo, pois faria a mulher perder a timidez que a protege dos homens. Ela seria semelhante a um animal selvagem que, ao se acostumar com a presença do homem, se deixa acariciar.


Mulheres caçando. Miniatura

A anatomia medieval confirmava o juízo depreciativo dos homens da Igreja em relação à mulher. A fisiologia da mulher foi objeto de longos debates. A conclusão era a de que ela trazia no próprio corpo as marcas da sua inferioridade, quando não dos seus malefícios.


Nascimento de Louis VIII. Miniatura

O Gênesis é citado para mostrar que a mulher seria um ser secundário, um apêndice do homem. Os órgãos femininos seriam menos aperfeiçoados e fracos, de certa maneira opostos aos masculinos. O corpo da mulher, portanto, foi submetido ao modelo masculino, e os seus órgãos classificados segundo o princípio de finalidade. Os seios, por exemplo, eram vistos apenas pela sua finalidade de aleitamento.

A mulher seria um tesouro a ser protegido e preservado, pois seria fácil de se perder. Daí a necessidade de reprimir, vigiar e enclausurar.

As mulheres que desejavam roupas cada vez mais formosas e caras preocupavam os pregadores. Esse cuidado com a aparência e com o corpo se aproximava da idolatria. A maquiagem e os adornos foram sistematicamente condenados.

Apesar de afirmarem que a mulher deve ser custodiada, os pregadores apelavam para o autocontrole da mulher. Aconselhavam-na a não se divertir muito, a mostrar-se desdenhosa, comer pouco, dançar com compostura e mover-se com moderação. Alertavam para o perigo da bebida e do ócio. Contra as tentações, prescreviam o trabalho e a caridade.

PEDRO, Antonio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 307-308. V. 1.

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