"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 11 de agosto de 2012

A herança legada por Eva

Adão e Eva. Iluminura, Manuscrito Hunterian, séc. XII

A mentalidade medieval foi influenciada pelo Gênesis e outros textos bíblicos. O ato sexual converteu-se em pecado porque se cria que através da concepção transmitia-se o pecado original. Eva, como instrumento de Satanás, foi considerada transmissora do pecado e colocada no centro das responsabilidades. Foi durante a Idade Média que começou a tradição pictórica pela qual a serpente era representada com rosto de mulher.

A esta ideia acrescentou-se mais tarde um novo pecado: a vaidade. Numerosas pinturas do século XIV mostram a serpente feminina segurando um espelho no qual Eva se contempla. A mulher aparecia aos olhos medievais como um ser propenso à queda, ocupada somente consigo, com o fim de provocar o pecado do varão.

Para sacerdotes e teólogos medievais, a mulher era ainda, naqueles séculos, o que parecera ser a Crisóstomo: "um mal necessário, tentação natural, calamidade desejável, perigo doméstico, fascinação mortal, o próprio mal que se apresenta disfarçado".

A literatura profana medieval retratava a mulher como alguém débil diante do pecado, irresponsável, traidora e perigosa.

A cultura bíblica, fortemente repressora, fazia que poucos nobres pudessem casar-se. Para aqueles obrigados ao celibato, tanto pela preservação da herança quanto por ordem da Igreja, a figura da mulher era vista como uma constante fonte de perigos, como afirmava Tomás de Aquino:

A mulher é subordinada ao homem em virtude da fraqueza de sua natureza, tanto no espírito como no corpo. [...] O homem é o começo da mulher e é o seu fim, assim como Deus é o começo e o fim de todas as criaturas. [...] a sujeição da mulher está de acordo com a lei da natureza, o que já não se dá com o escravo. [...] Os filhos devem amar ao pai mais do que à mãe.

Apoiando-se em Aristóteles e na biologia daquele tempo, Aquino supunha que a mulher contribui para a procriação apenas com matéria passiva, ao passo que o homem contribui com a forma ativa. Por conseguinte, ela é o vaso mais fraco do corpo, do espírito e da vontade. Nela predomina o apetite sexual, ao passo que o homem é a expressão de um elemento mais estável. O homem e a mulher são feitos segundo a imagem de Deus, principalmente o primeiro. O homem é o princípio e o fim da mulher, assim como Deus é o princípio e o fim do universo. A mulher precisa do homem em tudo, ele apenas precisa dela para a procriação. O homem pode realizar todos as tarefas melhor do que a mulher - pode até mesmo cuidar melhor dos afazeres da casa.

Aquino seguia a linha de Agostinho, que escreveu um comentário do Gênesis, no qual explicava que o homem é formado de uma parte carnal, o corpo, e de uma espiritual, a alma, a primeira subordinada à segunda. A parte animal do corpo é subordinada à razão, que é o princípio masculino, enquanto o feminino se identifica com o appetitus, o desejo. Apesar de ser dotada de razão, a parte animal desejosa predomina na mulher, ao passo que no homem predomina o racional, prevalecendo, portanto, o espiritual.

Na contramão dessa ideia, existiu um manuscrito com outra opinião sobre a mulher:

É preferível ser mulher a ser homem, a saber, na matéria: Adão foi feito da argila, e Eva, de uma costela de Adão; [...] na concepção: uma mulher concebeu Deus, o que um homem não pôde fazer; na aparição: Cristo apareceu a uma mulher depois da Ressurreição, a saber, a Madalena; na exaltação: uma mulher é exaltada sobre o coro dos anjos, a saber, a abençoada Maria. [...] São Bernardo até mesmo declara: "É uma grande graça ser uma mulher: mais mulheres são salvas do que homens".

Tal comentário era exceção. Na época prevaleciam escritos como o de André le Chapelain (o capelão) que, em torno de 1186, escreveu um tratado chamado De amore ou de honesquete amandi (do amor ou como amar distintamente), no qual advertiu aos homens que se precavessem até mesmo contra as religiosas: "Não tocá-las, jamais ficar a sós com elas". Já em relação aos clérigos, afirmou que esses se inflamavam com menos rapidez, pois eram homens e tinham melhor controle de suas paixões. Por isso, os chamou de "nobilíssimos", dotados dessa eminente dignidade conferida pela pureza sexual. Em relação aos monges, nem fez alusão, pois já foram juntar-se aos anjos.

ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina calada pela Inquisição. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 58-61.

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