"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A América Indígena: algumas reflexões

Templo de las tres Ventanas, Machu Picchu, Peru

As origens do homem americano e a história da ocupação da América são temas ainda muito debatidos pelos pesquisadores. Até recentemente, acreditava-se que o homem havia entrado no continente americano por um único caminho, o estreito de Bering, há cerca de 12.500 anos. No entanto, estudos arqueológicos realizados nas últimas três décadas, sobretudo no Brasil, no México e no Chile, indicam que a presença humana na América pode datar de 18 mil, 30 mil ou até 50 mil anos atrás. Tais estudos também admitem a possibilidade de os seres humanos que deram origem à população americana terem chegado em diversas ondas de migração e de povoamento, em diferentes épocas e por caminhos distintos. Esses outros caminhos possíveis para o lento processo de povoamento do continente teriam sido o oceano Pacífico e suas ilhas, e o Atlântico Norte. Ainda que as hipóteses que empurram a entrada do homem na América para trás precisem ser comprovadas, o fato de terem sido encontrados, em escavações no sul da Patagônia, vestígios com idade superior a 11.500 anos sugere que a versão da chegada há cerca de 12.500 anos pelo caminho exclusivo do estreito de Bering é praticamente insustentável.

De qualquer modo, o processo de povoamento resultou na ocupação de todo o continente, desde as terras geladas do Alasca e das ilhas do oceano Ártico, no extremo norte, até a Patagônia e a Terra do Fogo, no extremo sul, e desde o litoral do oceano Pacífico até o litoral do Atlântico. Todos esses povoadores e seus descendentes, ao longo de milhares de anos, criaram modos de vida muito diferentes e tiveram histórias muito particulares e pouco conhecidas por nós. Na época da chegada dos europeus, a América apresentava uma das maiores diversidades linguísticas e culturais do planeta, constituindo um verdadeiro mosaico de povos. Assim como num mosaico, cada pequena peça se assemelhava a uma série de outras e, ao mesmo tempo, se diferenciava de outras tantas.

Os grupos que habitavam localidades vizinhas evidentemente mantinham mais contatos diretos entre si do que os que viviam em regiões distantes. Esses contatos permitiam o compartilhamento e o intercâmbio de conhecimentos, técnicas e produtos, como alimentos coletados ou plantados, modos de cultivar a terra e de plantar, saberes sobre a fauna, a flora e as estações do ano, métodos de curar doenças, formas de construção e de organização do espaço habitado, modos de governo, explicações sobre a origem do mundo e do homem. A continuidade desses contatos por um longo período resultava, em geral, na predominância de modos de vida e de pensamento relativamente semelhantes na região onde habitavam esses grupos. A isso podemos chamar de região cultural, expressão usada para designar uma grande área geográfica ocupada por povos que compartilhavam elementos fundamentais em seus sistemas produtivos e/ou de pensamento, os quais, por sua vez, embasavam suas formas de organização social e de exercício do poder político, suas explicações sobre a realidade circundante e sobre o mundo passado, além de pautar suas relações político-comerciais.

A possibilidade de agrupar as centenas - ou os milhares - de povos indígenas americanos em regiões culturais nos ajuda a entender suas semelhanças e diferenças. Por exemplo, vemos que algumas semelhanças entre a sociedade maia do século VII e a asteca do século XV devem-se à sua pertinência à Mesoamérica, uma das regiões culturais americanas, não obstante o distanciamento geográfico e temporal que separou essas culturas. Por outro lado, também percebemos que as grandes diferenças entre grupos como os olmecas da costa do golfo do México, os tapajós da bacia amazônica, os taironas do norte da Colômbia e os mapuches das planícies argentinas estão ligadas ao fato de pertencerem a regiões culturais distintas.

Levando em consideração a amplitude geográfica do continente, a relativa antiguidade de sua ocupação e a diversidade cultural de seus povos nativos, é muito problemático fazer assertivas universalistas sobre a cultura e a história dos povos americanos. Da mesma forma, é inadequado nos atermos apenas a particularidades, que acabam por reforçar a distância desses povos em relação a nós. Ao contrapor a América indígena ao mundo europeu, muitos autores tendem a romantizar a história do contato e do confronto, propondo uma versão em que os atores se resumem a vencedores e vencidos. Esse tipo de visão pressupõe uma homogeneidade social e política que nunca fez parte da história do continente americano, e sim resultou da concepção romântica do "bom selvagem", que na sua "inocência" ou no seu "pacifismo" se teria rendido ao homem europeu e ampliado seu universo com os novos conceitos por ele introduzidos. Esse tipo de visão é na verdade pautada em uma série de preconceitos que infelizmente persistem em nossa memória histórica até os dias de hoje. Por que entendemos, por exemplo, que é importante conhecer os nomes dos participantes da Revolução Francesa, mas não nos importamos em desconhecer os nomes dos incas que durante 40 anos resistiram de maneira nada pacífica às forças espanholas, até serem derrotados em 1572? Em outras palavras, se nós, brasileiros, fazemos parte de um país formado a partir da convivência e do confronto entre europeus, indígenas e africanos, por que privilegiamos o estudo da história de um grupo e dedicamos aos demais apenas poucas palavras em nossos livros didáticos, jornais e revistas?

Parte da resposta a essa pergunta se encontra no fato de que a América e a África foram, por muito tempo, os principais alvos da dominação colonial praticada pelos povos europeus. E essa dominação, que provocou a morte, a escravidão e a fuga de milhões de indígenas e de africanos de suas terras, era justificada pela ideia de que os habitantes desses dois continentes eram "idólatras" ou "primitivos". Esse tipo de pensamento se materializou e foi difundido nos livros de história, filosofia e teologia, nas pinturas e em outras produções intelectuais de europeus e de seus descendentes na América, desde o início do período colonial até meados do século XX. Tais produções ajudaram a fortalecer a ideia de que o mundo ocidental - tanto pelo cristianismo quanto pelo avanço científico - representava o mais alto nível de desenvolvimento da história humana, e de que seu modo de vida era o modelo de "civilização" a ser seguido.

Esse tipo de pensamento consolidou estereótipos sobre a história dos povos indígenas, alguns dos quais ainda são muito fortes entre nós - por exemplo, a ideia de que são impermeáveis à transformação, a ideia de que são representantes de um estágio anterior da história humana, a ideia de que não são atores de sua própria história, mas apenas vítimas do expansionismo europeu. Contudo, graças à intensificação dos estudos e pesquisas, esse tipo de visão vem sendo progressivamente invalidado. Pesquisas recentes têm demonstrado que, assim como qualquer outro grupo humano, esses povos se transformam ao longo do tempo, segundo forças sociais internas, resultantes das relações dentro do grupo, e externas, resultantes das relações com outros grupos.

É importante perceber que a história dos povos indígenas na América, ou pelo menos de parte deles, não terminou com a chegada dos europeus, apesar da violência, do alto índice de mortalidade e da perda de suas terras. Ao contrário, os povos indígenas continuaram a atuar historicamente, relacionando-se entre si e com os europeus durante a época colonial e, depois, com as sociedades e Estados nacionais, até os dias de hoje. Para ficarmos apenas em dois exemplos, passados mais de 500 anos da chegada dos europeus à América, há cerca de 10 milhões de indígenas no México, num total de 100 milhões de mexicanos, e há aproximadamente 350 mil no Brasil, controlando cerca de 12% do território nacional.

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CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Por ti América. Rio de Janeiro: Pancrom, 2005. p. 21-24.

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