"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Camponeses revoltados e pés descalços na Europa moderna

Revolta camponesa na Alemanha

Os filósofos e os intelectuais discutiam entre si acerca da ciência e da religião e trocavam cartas. Encontravam-se em reuniões, nas "academias", em salões burgueses de grandes damas parisienses ou nos palácios de certos príncipes europeus.

Mas, para uma grande maioria das pessoas, nada tinha mudado.

* Nas grandes cidades, os pobres e os mendigos contavam-se aos milhares. Um padre, Vicente de Paula, fez muito para lutar contra a pobreza.

Vicente de Paula era filho de um camponês das Landes. Capturado por piratas muçulmanos, foi vendido como escravo em Tunis. Conseguiu escapar e ocupar-se, por algum tempo, dos remadores de galeras. As galeras eram navios a remos utilizados no Mediterrâneo, cujos remadores eram prisioneiros ou condenados, por vezes, por um crime, outras por coisa nenhuma (Luís XV enviava os protestantes para as galeras).

Em seguida, Vicente procurou confortar os doentes pobres e as crianças abandonadas.

* Nos campos, os pobres eram ainda em maior número. A situação era diferente de acordo com cada país europeu.

Na Europa ocidental, a "servidão" tinha quase desaparecido, ou seja, o senhor já não tinha toda a espécie de direitos no que dizia respeito aos camponeses. Os nobres recebiam dinheiro pelas terras arrendadas ou uma parte das colheitas. Alguns camponeses tinham enriquecido - eram os "ricos da aldeia" - mas a maioria vivia na pobreza. Os "jornaleiros" sem terras alugavam a sua "força de trabalho" aos mais favorecidos ou iam para as cidades aumentar ainda mais o número dos infelizes.

Na Europa de Leste, a antiga Moscóvia tornara-se no século XVII numa Rússia poderosa com o czar Pedro o Grande a querer imitar os ocidentais. Os nobres possuíam vastas propriedades e eram, ao mesmo tempo, funcionários que executavam as ordens do czar. Os camponeses, na miséria, acabavam por ser reduzidos à servidão e não tinham o direito de abandonar a terra do senhor.

Entre o século XVI e o século XVIII, os camponeses mais miseráveis revoltaram-se um pouco por toda a Europa.

- Ao sul do Império Germânico, uma grande revolta, chamada Guerra dos Camponeses eclodiu em nome da Reforma de Lutero.

Os camponeses reclamavam a supressão de todos os impostos devidos à Igreja. Foram apoiados pelos artesãos das cidades, por soldados e por filhos de camponeses. Estas pessoas do campo queimavam e destruíam castelos e mosteiros. Os príncipes, sem saber o que fazer, cederam a princípio e depois fugiram, como o bispo de Estrasburgo. Mas Lutero, com receio das violências, acabou por dar razão aos príncipes. Os camponeses foram finalmente derrotados, os seus chefes torturados e condenados à morte, e os príncipes luteranos continuaram a ser poderosos e autoritários.

“Só há uma maneira desse 'povinho' fazer sua obrigação. É constrangendo-o pela lei e pela espada, prendendo-o em cadeias e gaiolas, da mesma forma como se faz com bestas selvagens... melhor a morte de todos os camponeses do que a morte dos príncipes... estrangulem os rebeldes como fariam com cães raivosos.." 
(Lutero, conclamando os príncipes alemães a reprimir a revolta camponesa)



Na Alsácia e na Lorena, províncias que nesse tempo faziam parte do Império, foram muitos os revoltosos.

- No reino de França, os camponeses revoltaram-se contra os impostos do rei. Distinguiam-se agora o clero, a nobreza e o "terceiro estado" (os burgueses e os camponeses). O clero e a nobreza eram as "ordens privilegiadas" e não pagavam impostos ao rei. Só o terceiro estado os pagava. Mas, muitas vezes, os habitantes das cidades eram dispensados pelo rei. O imposto caía sobretudo sobre os camponeses. Estes também deviam taxas e impostos à Igreja.

Devido às muitas guerras, o rei, para manter os seus exércitos, tinha cada vez mais necessidade de dinheiro. Homens ao serviço do rei, com o auxílio de "archeiros" (polícias armados), eram encarregados de colectar o imposto. Para mais, entre batalhas, os soldados residiam nas casas dos habitantes e não hesitavam em roubá-los.

Quando os camponeses já não podiam mais com a miséria, quando os impostos aumentavam muito, surgiam grandes revoltas. A sul do reino, mas também na Normandia, na Bretanha e na Flandres, estes "Farroupilhas", "Pés Descalços", "Bonés Vermelhos", "Lustucrus" e "Tamanqueiros" resolveram lutar.

Houve cerca de 500 revoltas na Aquitânia entre 1590 e 1715.

O sino da igreja da aldeia tocava a rebate e os homens punham-se ao caminho encorajados pelas mulheres. Por vezes, eram conduzidos pelo padre da paróquia, e outras eram protegidos por um pequeno senhor. Descalços ou de socos de madeira e com chapéus de abas muito largas, armados de paus e de forquilhas, estes homens juntavam-se aos revoltados das aldeias vizinhas. Saqueavam alguns castelos, pilhavam as caves em busca de bons vinhos e queimavam os papéis dos gabinetes de impostos.

Por vezes gritavam: "Viva o rei sem gabela!"

O rei continuava a ser para eles uma personagem sagrada, mas recusavam que os seus servidores interviessem na vida da sua aldeia e odiavam os "gabeludos", aqueles que recolhiam a gabela.

A revolta terminou mal, de maneira geral, e alguns rebeldes foram enforcados para servir de exemplo. Durante o reinado de Luís XIV, as tropas reais cercavam os camponeses e os prisioneiros eram massacrados ou enviados para as galeras. Luís XIV, que pretendia representar Deus na Terra, conseguiu dominar as revoltas.

No resto da Europa, em Portugal, na Escócia, em Espanha e no sul de Itália, numerosos grupos de camponeses se revoltaram. E na Rússia um chefe cossaco (um povo que permanecera nómada a sua da planície russa), Stenka Razine, encabeçou uma enorme multidão de camponeses revoltados. Esmagado pelas tropas do czar, foi condenado à morte e torturado. No século XVIII, um outro cossado, Pugatchev, fez com que se revoltassem milhares de camponeses ao fazer-se passar por um czar destronado. Prometeu a supressão dos impostos, da servidão e a distribuição de terras.

A czarina Catarina mobilizou vários exércitos para dominar essas revoltas, mas, depois destas, os problemas nunca mais acabaram completamente na vastidão dos campos da Rússia até as revoluções do século XX.

CITRON, Suzanne. A história dos homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 204-209.

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