"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de dezembro de 2012

Destronando a colheita: a vida cotidiana entre 1500 e 1800 [das margens do Mar do Sul na China às margens dos lagos do interior da América]

Os comedores de batatas, Vincent Van Gogh

Na Europa e Ásia, uma família típica vivia praticamente à base de pão. Fosse em 1500 ou 1800, na França ou na China, a maioria das famílias não possuía terras, ou então, dispunha de propriedades muito pequenas que mal garantiam sua alimentação, mesmo nos anos de fartura. Inúmeros homens e mulheres solteiras deixavam suas minúsculas fazendas ou seus vilarejos rurais para trabalhar em outras fazendas ou em outros negócios. Geralmente, recebiam refeições gratuitas enquanto estavam no trabalho, e essas representavam uma parte considerável de seus ganhos.

Uma boa parte do trabalho rural ficava com as mulheres ou crianças jovens: capinavam as plantações, cuidavam dos gansos, carregavam água do poço para a casa, enrolavam as fibras e faziam tecidos, produziam cerveja, saíam à procura de ervas que serviam de remédios, colhiam lenha para o fogão e esterco para as plantações.

O fim do dia de trabalho, Jules Breton

Revirar os lugares à procura de comida e procurar forragem eram quase uma forma de vida. Um camponês que possuísse uma vaca e um pequeno pedaço de terra podia mandar que seus filhos, todos os dias durante o verão, cortassem capim à beira da estrada. [...] Nas florestas, procuravam-se cogumelos e frutas silvestres, e colhiam-se ovos de aves. [...] A vida cotidiana, em todas as partes do mundo, concentrava-se na produção de alimentos.


As respigadeiras, Jean-François Millet

Em 1800, em todo o mundo, alguns milhões ainda eram caçadores e lavradores, mas a maioria era de fazendeiros. Sua vida cotidiana era regida pelo sol e pela chuva. Das margens do Mar do Sul da China às margens dos lagos do interior da América, o acontecimento de triunfo no calendário econômico era trazer para casa a colheita [...].

Os grãos dominavam a mesa de refeição [...]. Uma grande parte dos grãos era comida na forma de pão, mas alguns acabavam chegando às bocas na forma de mingaus e sopa. O mingau de aveia, servido bem quente, era devorado com voracidade durante o inverno. Em épocas de fome, a água era adicionada em abundância a um pouco de farinha com o intuito de dar alívio temporário à sensação de fome. [...] Na Rússia e na Polônia, a kasha, um mingau feito de centeio, tinha aspecto mais fino e aguado quando as colheitas eram mais escassas.

Repasto de camponês com um jovem mendigo, Giacomo Francesco Cipper

Em muitas terras europeias, os grãos, principalmente a cevada, eram também usados para a produção de cerveja. Na Inglaterra, a cerveja caseira, tomada em quase todas as refeições, era praticamente tão essencial quanto o pão na dieta diária. [...] Num renomado colégio interno de Londres, em 1704, o café-da-manhã consistia de pão e cerveja, enquanto os pobres que viviam nos asilos recebiam cerveja em quase todas as refeições. O chá, bastante consumido na China, era uma bebida reservada somente aos mais abastados na Europa. O café também era um luxo, com exceção das terras produtoras desse produto como a Arábia e o Brasil.


A colheita da batata, Jean-François Millet

Na Europa e na Ásia, os vários grãos provavelmente forneciam mais de 80% da dieta de uma casa típica. Na Europa, a padaria da rua do vilarejo era, na verdade, um supermercado simples com dois tipos de pão à venda. O mais apreciado era o pão de trigo, feito com farinha quase pura, ao passo que os pães mais baratos consistiam de farelo e grãos de segunda categoria. [...]

O fracasso ou semifracasso de uma colheita era frequente desde o Sudão até a China. Na Finlândia, no início de 1690, um longo período de fome chegou a matar um terço da população. A França, que nos anos de fartura praticamente transbordava com os mais finos alimentos, sofreu um período de fome nacional em 16 dos 100 anos após 1700. Esse século que terminou em revolução, foi provavelmente o pior para as colheitas desde o século XI.

A colheita seguinte geralmente era mencionada nas orações de mulheres jovens e solteiras. Se a colheita fosse farta, seu casamento já há muito planejado tinha grande chance de se realizar; se a colheita fosse insuficiente, o casamento seria adiado. As mulheres na Europa Ocidental geralmente só se casavam depois dos 24 ou 26 anos de idade. Os casamentos tardios eram a principal razão de as mulheres darem à luz somente quatro ou cinco filhos. [...]


A loteria, Vincent Van Gogh

Uma boa colheita não era o suficiente, às vezes ficava sob risco quando os celeiros eram invadidos por ratos. Os gatos eram mantidos dentro de casa, nos celeiros de grãos e estábulos mais porque eram caçadores de ratos do que por serem animais de estimação. [...]

[...]

Na Europa, os principais cereais colhidos pelos regimentos de lavradores que usavam suas foices eram o trigo e o centeio. As plantações de painço ou milho miúdo também ocupavam grandes extensões de terra no norte da China e África, bem como na Europa. [...] A aveia, outro grão de bastante uso, era dada aos cavalos que puxavam grandes carroças, em época de paz, e armas pesadas, em época de guerra. [...] nos países pobres do norte, tais como a Escócia, a mesma aveia era também a comida dos pobres. O arroz era o principal produto nas partes mais quentes da China [...]. O milho, o maravilhoso produto vindo das Américas, era cada vez mais cultivado nas planícies ribeirinhas do sul da Europa, mas o preço de suas maravilhosas safras era a exaustão do solo.

Dos alimentos consumidos nas típicas casas europeias e chinesas das zonas rurais, somente uma fração era produzida no local. O sal era o alimento em comum a ser transportado por longas distâncias. Em 1500, o transporte de sal rendeu fortunas aos carroceiros e donos de barcos. A cidade de Veneza tinha praticamente o monopólio do sal colhido ao longo do Mar Adriático [...]. O Báltico era o lar do comércio de arenques e para salgar os arenques frescos era necessário uma pequena montanha de sal todos os anos.


Camponesas bretãs, Paul Gauguin

A parte mais ao norte da Áustria possuía ricos depósitos de sal que eram escavados pelos mineradores, no subterrâneo. [...]

Pequenos vilarejos poderiam ficar sem sal enquanto esperavam a neve do inverno derreter. As donas de casa regozijavam-se quando as carroças ou, na China, as barcaças finalmente chegavam com sacas de sal. A maioria dos habitantes dos vilarejos comprava pouco sal e usavam-no moderadamente, uma simples "pitada de sal" era suficiente. [...]

O sal marinho ou certos tipos de algas produziam a soda, que, por sua vez, era um dos ingredientes do sabão. Em muitas partes da Europa, o outro ingrediente do sabão era o sebo, a gordura dos animais, ou uma mistura de azeite de oliva e óleo de semente de colza. Fazer sabão, portanto, era usar matérias-primas que, do contrário, seriam comidas. Em épocas de fome, a fabricação de sabão e, até mesmo, o ato de lavar com sabão era como roubar a comida da boca dos famintos.


A refeição, Paul Gauguin

Os indianos e os turcos eram mais interessados no sabão e na higiene pessoal que os europeus. Na verdade, a Europa Ocidental tinha o hábito mais regular de lavar o rosto e as mãos em 1300 do que em 1800. A Peste Negra provavelmente fez com que as pessoas se tornassem desconfiadas dos banhos como lugares onde as infecções pudessem ser adquiridas. Os banhos eram vistos como lugares de lascidão moral. Na Alemanha, a cidade de Frankfurt tinha 39 banhos em 1387, mas, um século e meio depois com uma nova autoconsciência da nudez, a cidade apresentava somente nove.

A saúde sofria à medida que as cidades do interior tornavam-se maiores. Nenhuma cidade grande possuía sistema de esgoto. O rio era o escoadouro favorito, e o esgoto de alguém, depois de flutuar correnteza abaixo por 200 metros, tornava-se a água de lavar ou de beber de outra pessoa. No sudeste da Ásia, por outro lado, o esgoto dos vilarejos e das cidades era geralmente transportado por carroças até campos adjacentes e colocado no solo como fertilizante. [...]

[...]

Para a típica família de trabalhadores em algumas regiões da Europa e da China, os anos de escassez eram intercalados por um ano ocasional de abundância. A partir de 1570 aproximadamente, colheitas exuberantes tornaram-se menos frequentes no norte da Europa. O clima tornou-se mais frio e os portos do Báltico, tais como o de Riga, eram fechados pelo gelo com mais frequência. Próximo ao Mediterrâneo, as plantações de oliveiras e seu jovem fruto começaram a ser atingidos pelas geadas com mais frequência. [...]

O prolongamento do inverno e o espalhamento das geleiras tendiam a separar o sul do norte da Europa. Entre a Itália e a Alemanha, as passagens nas montanhas, acessíveis na época de Lutero, podiam ser perigosas mesmo no início do verão. [...] A Alemanha teve anos extremamente favoráveis para o vinho entre 1603 e 1622. [...]

Camponeses fazendo música e dançando, Cornelis Pietersz Bega

Em relação à China, esta sofria com sua própria série de desastres naturais a cada século: suas epidemias, secas, enchentes e incêndios bem como aquele desastre profundo de autopunição: uma longa guerra. No norte da China, em 1557, houve um terremoto em que 830.000 mil pessoas foram mortas. Uma seca prolongada teria matado muitos mais através da fome e das doenças, que eram facilitadas pela desnutrição. [...]

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O linho era um dos principais produtos do norte da Europa. Um produto têxtil antigo feito da planta do linho, dele vinham os panos de mumificação dos egípcios e as roupas de milhões de gregos e romanos. No início da era moderna, o linho era amplamente usado nas velas de navios, toalhas brancas de mesa e lençóis de cama [...], para fazer calças, macacões, aventais para crianças e, até roupas íntimas.

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O algodão, um produto estrangeiro, foi uma ajuda especial para a Europa. Cultivado na Índia ou em plantações de escravos na outra extremidade do Atlântico, o calicó e outros artigos da Índia ajudaram a população da Europa a expandir-se, ao permitir que uma maior quantidade de suas terras fosse cultivada para alimentos. [...] Após 1820, a lã também chegou em quantidades cada vez maiores da Austrália e Nova Zelândia. [...]

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No ano de 1800, a maioria das pessoas na Europa não tinha o costume de comprar nem um único item novo de vestuário das lojas e feiras. Faziam suas roupas em casa, herdavam-nas dos mortos ou compravam-nas de segunda mão das mulheres comerciantes que dominavam esse segmento de vestuário. [...] As roupas geralmente passavam de irmã para irmã mais nova, de irmão para irmão mais novo, e eram remendados, recosturadas, consertadas e cerzidas conforme mudavam de mãos.  [...]

Era um enorme esforço para a Europa, Ásia e África produzirem alimentos e roupas suficientes para manter sua população viva e bem. [...]

Dança de camponeses, Abraham Teniers

As casas na Ásia, Europa e África eram das mais simples: a maioria hoje seria chamada de favelas. Na Europa e na China, dividir a cama com alguém era normal, onde três ou quatro crianças se amontoavam. Às vezes, a família inteira dormia junto sobre um colchão feito em casa, cheio de palha colhida nas terras aráveis e renovado a cada época de colheita. [...]

Interior de uma habitação camponesa, Pieter Aertsen

[...]

A chaminé das casas era um pequeno buraco no telhado. A fumaça pairava dentro de casa e fornecia calor, bem como ardência nos olhos. Mesmo sob a luz do dia, as casas geralmente não tinham claridade suficiente e os vãos de janela consistiam não de vidro mas de folhas de janela feitas de madeira que, ao serem abertas, deixavam o frio e a luz entrar. [...]

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 172-179.

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