"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Aurora do século XX: Trabalho e cotidiano

A necessidade de cultivar alimentos e cuidar dos animais de criação ocupava todo o tempo de nove entre dez pessoas em todo o mundo. O dia a dia era dominado por plantações de coco e banana, campos de arroz e trigo, rebanhos de ovelhas e gado bovino, extração da borracha, pomares, vinhedos e bosques de oliveiras. Na Europa, o cotidiano ainda era mais parecido com o da África. A cada manhã, da Noruega a Moçambique, os primeiros a se levantar observavam o céu à procura de sinais de chuva, de ventos indicativos de tempo seco ou de quaisquer outros elementos climáticos que pudessem auxiliar ou prejudicar as plantações.

O semeador, Jean-François Millet


A colheita era o evento mais importante. Se fosse fracasso, dezenas de milhões de pessoas estariam expostas à fome, à subnutrição ou doenças graves. A maior parte dessa atividade era feita manualmente, por um pequeno exército de mulheres e homens que trabalhavam do nascer ao pôr do sol. [...]

A colheita de batata, Jean-François Millet


[...]

Em quase todas as partes do mundo, pesados carregamentos eram transportados pela força bruta. Carregadores, curvados sob o peso  que levavam, cruzavam montanhas íngremes, por onde não passavam estradas nem ferrovias. Quase todo o sal que chegava ao interior da parte sul da China era transportado em grandes blocos acomodados em uma armação de madeira colocada sobre os ombros dos carregadores. [...] Em portos movimentados, que se estendiam desde o Mar Vermelho até o Mar Amarelo, formava-se uma fileira de trabalhadores para carregar o carvão em sacos e cestas até os navios a vapor, uma vez que esteiras transportadoras eram raras. O carvão que abastecia os navios representava um risco para os passageiros bem vestidos, e as mulheres que usavam chapéus de tons claros e luvas brancas aborreciam-se quando percebiam a rapidez com que suas roupas ficavam salpicadas de pó de carvão.

Em países mais prósperos, muitas tarefas ficavam a cargo de cavalos, e não de suados homens e mulheres. [...]

As pessoas, em sua maioria, possuíam animais, grandes ou pequenos, mais por sua utilidade do que para servir de companhia. Gatos eram caçadores de ratos em armazéns e cozinhas. Cães ajudavam na caça e no pastoreio de ovelhas, e as raças de grande porte podiam ser aproveitadas para puxar pequenas carretas. [...]

Uma típica família rural europeia que se mudava para a cidade precisava menos de animais e dispunha de pouco espaço para eles. No entanto, à medida que as cidades cresciam e as pessoas, além de se tornarem mais prósperas, viviam mais, os animais de estimação se tornavam desejáveis. As cidades inglesas provavelmente foram as primeiras a abrigar animais de estimação em grande número - a Inglaterra organizou a primeira feira de cães, em Newcastle, em 1859 - e então o costume se espalhou pela Europa continental [...]. 

Nas propriedades rurais de boa parte do mundo, as tarefas cotidianas se pareciam. Com um balde, buscava-se água no poço ou córrego; a madeira vinha de longe até o fogão a lenha, onde se preparavam todas as refeições; as velas eram acesas no cômodo principal da casa ao anoitecer. [...] Crianças descalças, que não frequentavam a escola, seguiam o vagaroso carro de bois até as matas vizinhas, para enchê-lo de lenha e feixes de gravetos.

Certas regiões rurais da África e da Ásia desfrutavam de um padrão de vida talvez mais alto do que o de várias zonas rurais da Europa. [...] o típico tibetano [...] gostava muito de cantar e contar histórias. Em contraste com esses lugares alegres, em algumas partes do mundo ainda havia escravidão.

O escravo vivia em situação pior do que os indivíduos pertencentes a qualquer minoria étnica da Europa. Embora, por volta de 1880, o regime tivesse sido abolido no Brasil e em Cuba, uma ilha produtora de açúcar, ele persistia na África e na Península Arábica. Nos portos do norte africano, os navios que transportavam esses trabalhadores eram vistos movendo-se furtivamente à noite. Os turcos empregavam escravos domésticos em grande número e continuaram a mantê-los, embora em quantidades mais modestas, mesmo após o Império Otomano ter abolido tal prática, em 1889.

[...] Na década de 1920, a escravidão continuava nas montanhas da Etiópia, e mesmo na década de 1950, aproximadamente meio milhão de escravos trabalhavam na Arábia Saudita, a maioria em tarefas domésticas.

Poucos eventos contribuíram tanto para o fortalecimento do otimismo em 1900 quanto o fato de diversos males do passado estarem, aos poucos, sendo erradicadas. A escravidão era a principal delas.

[...]

Fora das terras dominadas pelos povos europeus, as condições de vida eram precárias. A taxa de mortalidade de crianças e de pessoas de meia-idade era alta. As calamidades naturais eram frequentes. Na África e na Ásia, a fome severa continuava. Pragas batiam às portas das cidades asiáticas. A malária atacou maciçamente nos trópicos e até mesmo o sul da Itália estava infestado de mosquitos transmissores da doença [...].

Em 1900, talvez metade dos habitantes do mundo jamais tenha conversado com um médico nem entrado em um hospital. Caso se sentissem muito doentes, procuravam a cura no folclore ou em antigos tratamentos à base de ervas. Na África, adivinhos, astrólogos ou necromantes muitas vezes eram chamados como última esperança. Em muitos países, as primeiras escolas de Medicina foram fundadas somente no século XX.

BLAINEY, Geoffrey. Breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 27-33.

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