"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O mundo mediterrâneo às vésperas das Cruzadas 2: o mundo bizantino

Cruzados atacam Constantinopla em 1204, artista desconhecido

[Em Bizâncio, o brilho da civilização urbana mascara o enfraquecimento político] Em 1025, por ocasião da morte de Basílio II, o Império Bizantino estava em seu apogeu. Cobria toda a Ásia Menor até a Armênia, o norte da Mesopotâmia e da Síria, Chipre, Creta, os Bálcãs, com todas as regiões compreendidas ao sul do Danúbio até Trieste e uma parte da Itália do Sul. Sua defesa era assegurada pelo exército (de soldados profissionais) da capital, reforçada pelos das diversas thémas, ou regiões. Sobre esse imenso conjunto reinava o imperador, o basileu, herdeiro direto dos imperadores romanos. O imperador bizantino era a lei encarnada, o eleito de Deus, o intermediário entre Deus e os homens, o agente supremo da justiça sobre a terra. Na prática, ele era tão poderoso quanto as condições da época o permitiam. A Administração formava uma rede que buscava circunscrever toda a sociedade do império. Na verdade, se desincumbia mal dessa tarefa, pois o império era muito vasto e os deslocamentos eram lentos.

As cidades renasceram a partir da metade do século IX e a capital, Constantinopla, excepcional em todos os sentidos, se aproximava do meio milhão de habitantes, ou seja, a metade de Bagdá. Distinguia-se pelo esplendor de seus monumentos: igrejas, palácios, residências suntuosas, muralhas do século V que desafiaram os invasores. Centro de cultura, a “Cidade” era também o centro econômico e social do império. Graças a seus comerciantes, estava na encruzilhada do mundo medieval, tanto pelos laços estabelecidos com o Islã como com o Ocidente bárbaro e com as planícies da Rússia.

[Inteiramente dedicado à sua prosperidade econômica, o império se põe, pela primeira vez em sua existência, em estado de paz] A aristocracia militar e rural via seu poder enfraquecido pela ascensão de novas classes sociais. Os imperadores renunciaram às conquistas, dissolveram os exércitos das thémas e deram acesso às funções imperiais e às dignidades a homens originários da burguesia rica da cidade, formados nas universidades. Enquanto isso, acontecimentos externos virão oferecer à aristocracia a oportunidade de um retorno ao poder. Invasores se apresentaram nas fronteiras: normandos da Itália do Sul a oeste, turcomanos a leste. Os turcos desfecharam invasões por toda a Ásia Menor até o mar de Mármara e ali se instalaram.

Em 1081, Aleixo I Comneno, oriundo de uma grande família da Ásia, tomou o poder e reagiu contra a política de seus predecessores, afastando a burguesia responsável pelas atividades comerciais e financeiras. Para reconquistar os territórios perdidos, ele pediu soldados ao papa. Em seu espírito, este pedido não comportava nenhuma ambiguidade: era uma questão de obter mercenários, não de requisitar a intervenção de exércitos ocidentais.

[Apesar de separados pela religião, os bizantinos sentiam-se mais próximos dos muçulmanos do que dos ocidentais] No princípio do século X, o patriarca Nicolas Mystikos escreveu a um emir muçulmano que existiam duas soberanias: “a dos sarracenos e a dos romanos que inundam com sua luz o conjunto da Terra. Portanto, é preciso viver em comunidade e em fraternidade com ambas; não é porque sejam separadas por modos de vida, costumes e religião que devem ser hostis uma com a outra.” Ao longo das guerras e por meio do comércio em tempos de paz, bizantinos e muçulmanos criaram laços e aprenderam a se conhecer. Com relação aos ocidentais, entretanto, os bizantinos nutriam sentimentos de condescendência, desprezo e desconfiança. Essa diferença de mentalidades se traduzia no domínio religioso. Em 1055, os legados do papa excomungam o patriarca Miguel Cerulário. A excomunhão não dizia respeito à Igreja ortodoxa, somente à pessoa do patriarca. Para justificar a tomada de Constantinopla pelos cruzados em 1204, o papado transformaria, a posteriori, este incidente em cisma. Porém, mais grave que este acontecimento simbólico, uma mentalidade carregada de mal-entendidos opunha bizantinos e ocidentais.

TATE, Georges. O Oriente das Cruzadas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 24-27.

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