"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Homofobia: crimes de ódio

Toda homofobia tem em algum aspecto da heterossexualidade sua base fundamental. Contudo, a heteronormatividade não passa de uma crença. Uma crença convencionalizada e mal fundamentada construída no costume e em suas repetições acríticas. Nunca no conhecimento e na verdade. A simples existência dos homossexuais no mundo, por si só, comprova a contradição e o tendencionismo dessa crença. Inclusive, o preconceito faz parte do domínio da crença por ter base irracional.  Preconceitos não dizem respeito ao conhecimento – não usam de raciocínios, argumentos e evidências lógicas para se fundamentarem. Preconceitos não são justificáveis. Principalmente quando acompanhados de altas dosagens de violência, intolerância e discriminação. Discriminar alguém com base em sua orientação sexual é promover tratamento desigual – geralmente inferiorizando-o. E promover tratamento desigual é crime no Brasil.

Dois homens nus, François-Xavier Fabre

São indícios preocupantes em todo o mundo. Nosso país tem apontado graus de intolerância contra os homossexuais que estão além da imagem acolhedora que propagamos pelo globo. Em 2009, foram vítimas de homofobia no país em torno de 198 pessoas. Em 2010, nossa sociedade chocou o mundo com imagens de jovens homossexuais sendo agredidos gratuitamente e à luz do dia em plena Avenida Paulista – coração da maior e mais cosmopolita metrópole do país. Mas a homofobia não é peculiaridade brasileira. No país mais poderoso do planeta, os EUA, 17,6% dos crimes de ódio, em 2008, foram motivados por orientação sexual. Outras culturas também indicam intolerância e ignorância ao tratar do tema. Na China pós-Revolução Cultural, por exemplo, os homossexuais se tornaram alvo regular de perseguições policiais – acusados de vandalismo e perturbação da ordem pública. Na Coréia do Norte a homossexualidade é condenada enquanto vício promovido pela decadente cultura ocidental capitalista – supostamente deturpadora de caráter. Todavia, curiosamente, todos os dias noticiários estão abarrotados de casos de violência abusivos por parte de heterossexuais e nem por isso atribuímos tal violência e agressividade a essa orientação sexual. A verdade é que o suposto medo homofóbico desencadeia níveis de violência injustificáveis. Superiores a qualquer ameaça que os homossexuais possam vir a representar aos tradicionais costumes sociais.

Bacanal, Wilhelm von Gloeden

Em suma, a prática homofóbica se manifesta num conjunto de atitudes segregadoras, agressivas e discriminatórias de inferiorização dos homossexuais por parte dos heterossexuais. Trata-se de um preconceito fundamentado numa crença equivocada e irracional de que somente são possíveis no mundo aqueles que se atraem sexualmente pelo sexo oposto (heterossexualidade). Essa falsa crença deve ser sobreposta à conscientização de que homossexuais são seres vivos, seres humanos. Eles existem e estão ativamente dentro da sociedade. Pagam impostos como todo mundo, compram propriedades e se relacionam como todo mundo. Estudam, trabalham, amam, se frustram, possuem amigos e inimigos, são gordos e magros, bonitos e feios, gentis e sacanas, são tímidos e atrevidos como todo mundo. Se eles estão vivos é porque têm lugar para eles no mundo, caso contrário estariam mortos ou não existiriam. Mas existem. Eles existem. Existem. Nascem, têm vida própria, mães, pais e amigos. E, por existirem, seus direitos devem ser preservados e garantidos como os de qualquer outro ser humano, membro da sociedade civilizada e organizada legalmente.


A massagem, Édouard Debat-Ponson

Nossa constituição zela pelo bem-estar da população e prevê que o respeito pelo outro independe das suas escolhas afetivas pessoais. A Constituição Federal Brasileira define como objeto fundamental da República: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação”. A expressão quaisquer outras formas refere-se a todas as formas de discriminação não mencionadas explicitamente no artigo, tais como a orientação sexual, entre outras. Além de a Constituição proibir qualquer forma de discriminação de maneira genérica, várias outras leis estão sendo discutidas no Congresso a fim de se proibir especificamente a discriminação aos homossexuais. Vale lembrar também que países como o Canadá, a Holanda, Portugal, Argentina e Uruguai já legalizaram o casamento homossexual com o objetivo de reconhecer os direitos civis básicos dessa população.


Amantes do sol, Henry Scott Tuke

No sentido de regulamentar os direitos civis dos homossexuais no Brasil, a partir de 2011 passamos a permitir a legalidade da união estável entre indivíduos do mesmo sexo. O que a legitimação desse tipo de união vem estimular é a defesa de que a união deve ser legal em função do afeto nela presente. Casamentos não são mais (desde o século XVIII) obrigações sociais, nem alianças sociais e políticas entre famílias, não são meios de salvação da alma nem garantias de renda e muito menos mecanismo para manutenção da espécie. Casamentos são celebrações do direito de união afetiva com parceiros de nossa livre escolha. Legitimar a união e, daqui para frente, o casamento entre os homossexuais é afirmar que seus direitos fundamentais estão preservados, bem como o de qualquer outro brasileiro. É uma questão de justiça. O texto das uniões estáveis padronizado nos cartórios brasileiros é enfático: uniões estáveis asseguram direitos civis e a constituição familiar (não a tradicional, mas todos os tipos de família). Afinal, quem é a favor da família – enquanto núcleos funcionais de afeto e compreensão – tem de ser a favor de todos os tipos de famílias possíveis no mundo.


Duas mulheres valsadoras, Henri de Toulose-Lautrec

Por fim, extinguir a homofobia e legalizar os homossexuais na sociedade são atos imperativos para a garantia da qualidade de vida de toda uma geração que está por vir. Seja por adoção, seja por inseminação artificial e uso de barrigas de aluguel ou ainda pela reprodução genética entre duas mulheres, o que importa é que novas famílias estão se constituindo a partir das relações afetivas homossexuais. Assim como no século XX, novas famílias também se constituíram a partir de relações afetivas oriundas de divórcios. E a nova geração de brasileiros que se forma agora não pode vir a sofrer com a homofobia lançada sobre seus pais e mães. Assim como filhos de mulheres e homens divorciados não mereciam sofrer preconceito nas décadas passadas, quando o divórcio ainda era tabu social. Temos de minar a homofobia agora, não só pelo movimento LGBT em si, mas para que as novas gerações não precisem viver marginalizadas e clandestinas dentro da sociedade. Os recentes debates – mesmo que 20 anos atrasados – sobre o assunto são frutíferos e necessários para o amadurecimento de toda a sociedade brasileira. Espera-se que seus resultados sejam racionais, tolerantes, imparciais e objetivos – como toda verdadeira Ética deve ser.

Ana Augusta Carneiro. Crimes de ódio. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 49-50.

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