"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Josué de Nazaré [A história de Josué de Nazaré, que os gregos chamaram de Jesus]

"Deposição", Arnold Böcklin

No outono do ano 815 da fundação da cidade (que seria o ano 62 d.C. pelo nosso sistema de medir o tempo), Esculápio Cultelo, médico romano, escreveu a seguinte carta a seu sobrinho que estava com o exército na Síria:

Caro Sobrinho,

Há poucos dias fui chamado a atender um doente chamado Paulo. Ele parecia ser um cidadão romano de ascendência judia, homem instruído e de maneiras agradáveis. Disseram-me que estava em Roma por causa de um processo judicial, um apelo lançado por um de nossos tribunais provinciais, de Cesaréia ou alguma outra cidade do Mediterrâneo oriental. Descreveram-no como um sujeito "desequilibrado e violento", que fazia discursos contra o povo e contra a lei. Quanto a mim, achei-o muito inteligente e extremamente honesto.

Um amigo meu, que esteve com o exército na Ásia Menor, afirma que ouvir falar dele em Éfeso, onde Paulo teria pregado sermões sobre um novo e estranho deus. Perguntei a meu paciente se isso era verdade e se ele de fato incitara o povo a rebelar-se contra a autoridade de nosso bem-amado imperador. Paulo respondeu-me que o reino de que falava não era deste mundo, e me disse muitas coisas estranhas que não compreendi, mas que se deviam provavelmente aos delírios da febre.

Sua personalidade causou sobre mim forte impressão, e lamentavelmente ele foi morto na estrada de Óstia há poucos dias. Por isso escrevo-te esta carta. Quando visitares Jerusalém, quero que descubras algo sobre meu amigo Paulo e sobre o estranho profeta judeu que parece ter sido seu mestre. Nossos escravos estão ficando entusiasmados com esse dito Messias, e alguns deles, que ousaram falar abertamente sobre o novo reino (seja isto o que for), foram crucificados. Gostaria de saber a verdade acerca desses rumores. Sempre dedicado a ti,

Teu Tio
ESCULÁPIO CULTELO

Seis semanas depois, Gládio Ensa, o sobrinho, capitão da VII Infantaria Gálica, enviou ao tio a seguinte resposta:

Caríssimo Tio,

Recebi tua carta e cumpri tuas instruções.

Há duas semanas, nossa brigada foi enviada a Jerusalém. Diversas revoluções aconteceram nos últimos cem anos, e quase nada resta da antiga cidade. Já estamos aqui há um mês e amanhã marcharemos a Petra, onde algumas tribos árabes têm causado problemas. Tomarei esta noite para responder às tuas perguntas, mas por favor não esperes que eu te forneça um relato detalhado.

Falei com a maioria dos velhos desta cidade, mas poucas foram capazes de me dar informações concretas. Há alguns dias, um mascate veio ao acampamento. Comprei dele algumas azeitonas e lhe perguntei se ouvira falar do famoso Messias que fora executado quando ele era jovem. Disse que se lembrava claramente do acontecimento, pois seu pai o levara ao Gólgota (uma colina fora da cidade) para assistir à execução e mostrar-lhe o que acontecia com os inimigos da lei do povo judeu. Deu-me o endereço de um certo José, que foi amigo pessoal do Messias, e me disse que, se quisesse saber mais, eu deveria ir visitá-lo.

Hoje pela manhã, fui à casa de José. Era um homem bastante velho, que fora pescador num dos lagos de água doce. Sua memória era clara, e dele por fim obtive um relato relativamente preciso do que aconteceu naquela época tumultuada, antes que eu nascesse.

Tibério, nosso grande e glorioso imperador, sentava-se então no trono, e um funcionário de nome Pôncio Pilatos era governador da Judéia e da Samaria. José sabia pouco a respeito de Pilatos. Parece ter sido um funcionário honesto, que deixou atrás de si uma boa reputação como administrador da província. No ano 783 ou 784 (José se esquecera da data exata) Pilatos foi chamado a Jerusalém por conta de um tumulto. Dizia-se que um certo jovem (filho de um carpinteiro de Nazaré) estava planejando uma revolução contra o governo romano. O estranho é que nossos próprios espiões, que geralmente estão bem informados, aparentemente nada sabiam a respeito disso; e, quando investigaram o assunto, relataram que o carpinteiro era um excelente cidadão e que não havia motivo para intimá-lo. Porém, segundo José, os antiquados líderes da fé judaica estavam muito aborrecidos. Odiavam a popularidade que aquele homem granjeara junto às massas dos hebreus pobres. O "Nazareno" (assim disseram a Pilatos) havia afirmado publicamente que um grego, um romano ou mesmo um filisteu, que procurasse levar uma vida decente e honrada, era tão bom quando um judeu que passasse o dia a estudar as antigas leis de Moisés. Pilatos, ao que parece, não se deixou impressionar por esse argumento e, quando as turbas ao redor do templo ameaçaram linchar Jesus e matar todos os seus seguidores, decidiu ficar com o carpinteiro sob sua custódia para salvar-lhe a vida.

Pilatos não parece ter compreendido a verdadeira natureza do conflito. Sempre que pedia aos sacerdotes judeus que expusessem suas queixas, eles gritavam "heresia" e "traição" e ficavam terrivelmente eufóricos. Por fim, segundo me contou José, Pilatos mandou trazerem Josué (era esse o nome do Nazareno, mas os gregos que vivem nesta parte do mundo sempre o chamam de Jesus) para interrogá-lo pessoalmente. Falou com ele por várias horas. Perguntou-lhe sobre as "doutrinas perigosas" que teria pregado às margens do mar da Galiléia. Mas Jesus lhe respondeu que nunca falara de política. Não estava interessado no corpo do homem, mas em sua alma. Queria todos vissem a seus próximos como irmãos e amassem um único deus, o pai de todos os seres.

Pilatos, que provavelmente era versado nas doutrinas dos estóicos e dos outros filósofos gregos, não parece ter descoberto nada de sedicioso na fala de Jesus. Segundo meu informante, fez mais uma tentativa de salvar a vida do bondoso profeta. Ficava adiando a execução. Enquanto isso, o povo judeu, movido à fúria pelos sacerdotes, ficou incontrolável. Já houvera muitos tumultos em Jerusalém antes disso, e eram poucos os soldados romanos acampados nas proximidades. Relatava-se às autoridades romanas em Cesaréia que Pilatos "caíra vítima dos ensinamentos do Nazareno". Por toda a cidade circulavam petições para que Pilatos fosse destituído de seu cargo por ser inimigo do imperador. Sabes que nossos governadores têm ordens rigorosas de evitar todo rompimento manifesto com nossos súditos estrangeiros. Para salvar o país da guerra civil, Pilatos decidiu por fim sacrificar seu prisioneiro Josué, que se portou com grande dignidade e perdoou todos os que o odiavam. Foi crucificado em meio aos gritos e aos risos das multidões de Jerusalém.

Foi isso o que José me contou, com lágrimas correndo pelas faces envelhecidas. Dei-lhe uma moeda de ouro antes de ir embora, mas ele a recusou e me disse que a desse a alguém mais pobre. Fiz-lhe também algumas perguntas sobre o teu amigo Paulo. José o conhecera ligeiramente. Parece ter sido um fabricante de tendas que abandonou a profissão para pregar as palavras de um deus amoroso e misericordioso, muito diferente do Jeová de que os sacerdotes judeus nos falam o tempo todo. Depois disso, parece que Paulo viajou muito por toda a Ásia Menor e a Grécia, dizendo aos escravos que todos eles são filhos de um único pai amoroso e que a felicidade aguarda a todos, pobres e ricos, que procurassem viver honestamente e fazer o bem aos sofredores e aos miseráveis.

Espero ter respondido satisfatoriamente às tuas perguntas. No que diz respeito à segurança do Estado, a história toda me parece inofensiva. Mas nós, romanos, nunca fomos capazes de compreender o povo desta província. Lamento por terem executado o teu amigo Paulo. Sinto falta de casa e abraço-te.

Teu diligente sobrinho,
GLÁDIO ENSA.

VAN LOON, Hendrick Willem. A história da humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 119-123.

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