"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O golpe de 64 e a ditadura militar 3: a repressão

A verdade ainda que tardia (detalhe de painel instalado na Câmara), Elifas Andreato

O líder comunista Gregório Bezerra tinha 63 anos ao ser preso pela polícia particular do usineiro Zé Lopes. O fato ocorreu nos primeiros dias de abril de 1964, no interior de Pernambuco. Transferido para Recife, Gregório foi espancado pelo coronel Villocq Viana e pelos seus soldados, no quartel do Exército. Recebeu socos, pontapés e pancadas com barras de ferro. Obrigaram-no a caminhar descalço sobre ácido jogado no chão. Com os pés em carne viva, amarrado pelo pescoço com três cordas, puxado por soldados, teve de desfilar pelas ruas da capital pernambucana.

O coronel Villocq Viana comandava a exibição, mostrando ao povo o "comunista traidor da pátria". O ex-chefe de polícia Waldenkolk Wanderley, tomando a corda de um soldado, gritava: "Este é o comunista que queria destruir o lar de vocês. Agita agora, traidor". E desabavam socos e pontapés sobre o prisioneiro.

O povo assustou-se; mulheres desmaiaram. O coronel Villocq Viana levou o cortejo até a sua casa, para exibir o "traidor da pátria" à esposa. O homem ensanguentado, porém altivo, respondia às pancadas e insultou com uma pergunta: "É esta a civilização cristã e ocidental?" Seu comportamento impressionou a mulher, que caiu numa crise de choro. Irritado, o coronel aumentou o volume dos gritos e a força das pancadas.

A agressão a Gregório Bezerra foi o prenúncio do que aconteceria no Brasil: prepotência da polícia particular dos poderosos, tortura dentro dos quartéis e histerismo da "nova autoridade" exibido ostensivamente como patriotismo. Mas um prenúncio ainda tímido: tudo iria piorar.

Os primeiros meses pós-golpe ficaram marcados pela detenção de aproximadamente 50 mil pessoas. Os militares realizaram uma "operação pente-fino": de rua em rua, de casa em casa, procuravam suspeitos, livros, documentos, qualquer coisa que ligasse os acusados ao governo anterior ou à "subversão". Não se prendiam "culpados", mas todos os que não podiam provar inocência. Poucos líderes sindicais e estudantis escaparam da repressão.

O interrogatório era acompanhado de espancamento, que endurecia a "periculosidade" da vítima. Dessa forma, sofriam mais os inocentes e os completamente ignorantes da nova política - por não terem o que esconder, não mentiam, diziam que não sabiam de nada e, por isso, tornavam-se altamente suspeitos pela sua "resistência".

Nas primeiras semanas depois do golpe, a imprensa (ainda sem censura plena) noticiava timidamente as violências. Mas a revista Time informou ao mundo a existência da Operação Limpeza, assegurando que se prendiam em média 10 mil pessoas por semana. A imprensa internacional divulgou a situação do Brasil e já em setembro de 1964 - seis meses após o golpe - as entidades internacionais dos direitos humanos começavam a denunciar o regime militar brasileiro.

Prendeu-se tanto que as cadeias foram insuficientes. O Maracanã virou presídio; navios da Marinha receberam  centenas de "subversivos". Os quartéis em todo o Brasil lotaram de prisioneiros. A impunidade estimulou o uso da tortura. Cometeram-se tantos abusos que até a imprensa brasileira começou a denunciá-los. O governo Castelo Branco, geralmente apresentado como "democrático", prometia investigar, enquanto a violência ia se incorporando ao cotidiano nacional.

Em 1968, o AI-5 impôs à imprensa a mais brutal censura da história do Brasil. Absolutamente nada que "ofendesse" o governo podia ser noticiado. A partir daí, a violência tornou-se um método de dominação. Todos os jornais, inclusive os que apoiaram o golpe, foram censurados e alguns de seus diretores, presos.

O "Exército de Caxias" chegou a um rebaixamento moral que os militares talvez pensassem jamais ser possível. Em abril de 1968, explodiu uma bomba tão forte no saguão de O Estado de S. Paulo que arrebentou os vidros dos edifícios localizados em um raio de 500 metros. As autoridades atribuíram o atentado às "forças de esquerda", usando o fato para justificar o aumento da repressão e da censura. Dez anos depois, descobriu-se que a explosão havia sido preparada e executada pelo Estado-Maior do II Exército.

Seguiram-se outros atentados planejados pelo II Exército para culpar a esquerda, entre eles um idealizado pelo general Jaime Portela, chefe da Casa Militar da Presidência da República. Em 20 de agosto de 1968, um grupo de soldados da Força Pública de São Paulo explodiu uma bomba em um estacionamento em frente do Deops. A operação era tão secreta que o seu líder foi torturado por engano nas dependências do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic): pressionado, Aladino Félix [...] confessou ter agido sob as ordens do general Portela.

Os atentados de direita multiplicaram-se, alguns com o objetivo claro de intimidar políticos, artistas ou intelectuais, outros para incriminar as esquerdas. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) atacou livrarias, teatros, cinemas e escolas.

Um dos mais espetaculares atentados projetados pelo governo - ou por militares intimamente ligados ao poder - acabou frustrado pela recusa de um oficial em executá-lo. Em 1968, o brigadeiro João Paulo Penido Burnier, chefe de Gabinete do ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza Mello, planejou explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, com o auxílio do Para-SAR. Milhares de pessoas morreriam, mas, segundo o brigadeiro Burnier, o atentado seria necessário para "salvar o Brasil do comunismo", instigando o ódio da população contra os "subversivos", que levariam a culpa pelas mortes.

O capitão-aviador Sérgio Miranda de Carvalho, encarregado de executar o plano, negou-se a cumprir a missão e ameaçou denunciá-la, caso Burnier pretendesse levá-la adiante com outros oficiais. O plano frustrou-se, mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica, em 1969, acusado de "louco".

Só em 1978 a verdade veio à tona, graças ao depoimento do brigadeiro Eduardo Gomes, em defesa do capitão Sérgio. O brigadeiro confirmou que se preparava "a explosão do gasômetro, a destruição de instalações de força e luz, [que seriam] posteriormente atribuídas aos comunistas". Em seguida ao pânico, viria a segunda etapa:

[aconteceria] sumariamente, a eliminação física de personalidades político-militares, o que, no seu entendimento [do brigadeiro Burnier], possibilitaria uma renovação nas lideranças nacionais. A execução de tal plano aproveitar-se-ia do momento psicológico em que as passeatas e agitações estudantis perturbavam a ordem pública.

O ano-chave da institucionalização da tortura foi 1969. Nesse ano, com a intensificação da guerrilha e dos assaltos a bancos por grupos de esquerda, deu-se início à organização metódica da repressão. Aperfeiçoou-se o uso psicológico da violência. Surgiram as "salas especiais", munidas de aparelhagem de tortura: cadeiras e camas eletrificadas, paus-de-arara etc. Paralelamente, aprimoram-se os meios legais e os tribunais que encobriam a tortura. Médicos e legistas apresentavam os violentados como indivíduos gozando de plena saúde e os assassinados na tortura como vítimas de "morte natural". Os cadáveres que não podiam ser escondidos apareciam em terrenos baldios ou eram sepultados anonimamente ou, ainda, informava-se que aquelas pessoas haviam morrido atropeladas.

Para fazer tudo isso, não bastou a imposição do autoritarismo - o regime precisou, também, "limpar" as Forças Armadas dos elementos mais democráticos ou que simplesmente sentiam pudor de compactuar com as violências. Onze dias depois do golpe, o Exército já computava 122 oficiais expulsos, sob a acusação de serem "contra-revolucionários" e centenas receberam advertência pela sua conduta revolucionária "fraca". Os militares punidos eram considerados oficialmente "mortos": perdiam os seus direitos, e as suas esposas ganhavam pensão de "viúva". Até 1967, as Forças Armadas expurgaram 1.228 oficiais, sendo 510 do Exército, 374 da Aeronáutica e 344 da Marinha.

Enquanto isso, o Inquérito Policial Militar (IPM) de cada estado recorria aos mais curiosos argumentos. Edson Germano de Brito, por exemplo, foi condenado porque o seu comunismo era um "mal de família". No IPM de Goiás, consta que ele era "notoriamente comunista [...] aliás, parece mal de família, pois isso ocorre com todos os Germano do estado de Goiás". [...]

Para assegurar a repressão, importavam-se vários técnicos norte-americanos. Um desses especialistas, Dan Mitrione, ficou bastante conhecido. Ele sequestrava mendigos nas ruas de Belo Horizonte e os levava aos quartéis, para servirem de cobaia: torturava-se para ensinar a policiais e militares brasileiros os princípios da tortura "científica". Dan Mitrione, que no tempo da ditadura foi nome de rua em Belo Horizonte, acabou morto no Uruguai pelos tupamaros (extremistas de esquerda).

Mas sem só mendigos se transformavam em cobaias. Vários estudantes também "colaboraram" com o aprendizado dos torturadores. Maurício Vieira de Paiva, 25 anos, foi torturado de acordo com sequências fotográficas, em aula para cem militares das Forças Armadas, "sendo instrutor um tenente Hayton", segundo o seu depoimento, em 1970. Isso aconteceu em todo o Brasil: jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres caíram vítimas do processo.

Há centenas de depoimentos sobre as torturas nos arquivos da Justiça Militar e de entidades de defesa dos direitos humanos. Eles descrevem os mais variados métodos: o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão, a pimentinha, o afogamento, a geladeira, os choques elétricos e até o emprego de insetos e animais (no Rio de Janeiro, usava-se uma jibóia chamada Miriam). O livro Brasil: nunca mais - Um relato para a história traz uma extensa coleção de relatos e denúncias comprovadas sobre a prática da tortura.

[...] No Nordeste, os latifundiários aproveitaram-se da situação para satisfazer as vinganças mais cruéis. Em Tempo de Arraes, Antonio Callado fala de "um chifre de boi com a ponta cortada". Conforme um camponês relatou ao escritor, o tal chifre seria usado para a aplicação de um clíster (introdução de substância líquida por via anal) nos subversivos:

É o chifre de clíster do feitor Valentim. Gostava de matar gente pela traseira. Ele tinha uma receita para quando pegasse o deputado Julião: creolina, sebo e pimenta. Para Arraes, salitre derretido, sebo e óleo de mamona.

A bestialidade estava liberada.

[...] A tortura como método conseguiu matar o homem no homem: deixava marcas tão profundas que, depois, se tornava difícil querer viver. Para alguns dos torturados, a indignidade do outro - o torturador - atingia-os de tal modo que era impossível continuar pertencendo àquela humanidade.

Em uma brutal ironia, a ditadura apelou ao "suicídio" quando não tinha como explicar os seus crimes. A primeira vítima fatal da tortura (conhecida oficialmente) foi o tenente José Ferreira de Almeida, da Força Pública de São Paulo. A repressão registrou a sua morte como "suicídio". Em 1975, aconteceu em São Paulo a Operação Jacarta, liderada pelo secretário da Segurança coronel Erasmo Dias. Visava prender vários suspeitos de subversão. Entre eles, foi detido o jornalista Vladimir Herzog, que morreu em consequência das torturas. Os órgãos de segurança informaram que ele "suicidou-se". Outro que morreu nas torturas, o operário Manoel Fiel Filho, também apareceu nos documentos oficiais como "suicida". Nos três casos, provou-se posteriormente a farsa - nenhum cometeu suicídio, todos morreram sob tortura.

Alguns aspectos da repressão atingiram tal dramaticidade que escaparam ao controle da ditadura, estimulando o povo a solidarizar-se com as vítimas e dar forças à oposição.

Em 28 de março de 1968, a Polícia Militar invadiu o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Alegou-se que os estudantes que tomavam refeições no local pretendiam manifestar-se contra os Estados Unidos, diante da sua embaixada. Os soldados atiraram, feriram alguns estudantes e mataram Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos. A notícia espalhou-se rapidamente pelo Rio. Organizaram-se passeatas e protestos. O corpo do estudante foi velado na Assembléia Estadual. A repressão preparou-se para conter os manifestantes.

No dia seguinte, milhares de pessoas acompanharam o enterro do secundarista. À noite, os estudantes voltaram às ruas, carregando tochas e cantando o Hino Nacional em surdina. Tentaram fazer uma vigília diante da Assembléia, mas acabaram expulsos pela polícia.

O enterro do jovem marcou a "virada" do povo: a ditadura era francamente antipatizada. A emoção tomou conta do Rio. Cerca de 30 mil pessoas assistiram à missa de sétimo dia de Edson Luís, na Igreja da Candelária. Terminada a missa, o povo saiu e sofreu uma carga da cavalaria: golpes de "espada em prancha", "cutucadas" de baionetas e "atropelamentos" pelos cavalos. Segundo um relato do Jornal do Brasil:

Mulheres, velhos e crianças corriam em todas as direções, e os cavalarianos desembainhavam as espadas, enquanto os outros usavam cassetetes. Todo o dispositivo policial montado na Candelária foi acionado e começou a espancar os populares. Os cavalarianos atiravam seus animais sobre a multidão.

Tentava-se intimidar o povo. Sem resultado: à tarde, realizou-se nova missa e o bispo dom José de Castro Pinto, de mãos dadas com populares, formou um círculo em torno da igreja, para impedir o ataque da cavalaria. Ao fim da missa, o povo saiu em passeata, com o bispo e os padres à frente.

A morte de Edson Luís e os acontecimentos seguintes tiveram uma grande importância: "jogaram" a Igreja para o lado dos estudantes e da oposição. A partir daquele momento, o que já acontecia em setores isolados do catolicismo passou a ser uma política quase oficial: a Igreja, quando não se posicionava ostensivamente contra a ditadura, pelo menos condenava as violências e defendia os perseguidos, sem se importar com a sua cor política.

A Igreja forneceu um dos principais contingentes que enfrentou a ditadura: sacerdotes e leigos aliaram-se à Ação Popular (AP) e apoiaram outros grupos de luta armada, inclusive marxistas, como exemplifica a ligação dos dominicanos com Mariguela.

Centenas de católicos, inclusive de padres, acabaram torturados e mortos em todo o Brasil. Entre os casos mais trágicos, encontra-se o de frei Tito, torturado cruelmente pelo delegado Fleury e equipe. Depois de resistir à destruição do corpo, frei Tito sucumbiu à tortura psicológica. Uma pequena frase do seu depoimento, em Memórias do exílio, revela o seu desespero: "Só havia uma solução: matar-me".

Livre das perseguições, convalescendo na França, frei Tito não suportou a lembrança das torturas e suicidou-se, em 1974, aos 29 anos. O seu suicídio foi, na verdade, um assassinato a distância, uma consequência das torturas que o delegado Fleury infligiu-lhe na prisão.

O aparelho de repressão lançou mão de todos os meios - um deles, o da difamação, marca registrada dos regimes fascistas. Logo após a morte de Mariguela, o jornal O Globo encarregou-se da infâmia: "Eles [os dominicanos]  traíram sua fé passando para o comunismo, depois traíram o comunismo entregando Mariguela; são os novos Judas".

[...]

Frei Tito encarna uma tragédia revolucionária. Mas milhares de outros sofreram revolucionariamente a tragédia de libertar o Brasil de um tempo de fúria e de trevas.

A morte de Bacuri é outro emblema da brutalidade. O governo militar informou que Bacuri, nome de guerra de Eduardo Leite, morreu ao fugir da prisão e resistir à polícia. Mentira: ele tinha sido torturado da forma mais brutal. Furaram os seus olhos, quebraram as suas pernas, cortaram as suas orelhas. A equipe do delegado Fleury, torturava-o diariamente. Executaram-no com uma machadada, na véspera da sua libertação, que ocorreria no resgate de presos após um sequestro. Seu corpo foi entregue à família. Ao abrirem o caixão, amigos e parentes depararam com o horror: um rosto sem olhos e orelhas - ele não tinha rosto.

Se não existissem milhares de outros, Tito e Bacuri bastariam para demonstrar do que uma ditadura é capaz.

A ditadura não poupou nem as crianças. Prendeu o menino Eduardo, de 4 anos, junto com a sua mãe, a professora Maria Madalena Prata Soares. Torturou o carpinteiro Milton Gaia Leite, a sua esposa e os seus filhos, de 5 e 6 anos. Provocou abortos em dezenas de mulheres. E fez do estupro uma norma, conforme  relatou Inês Etienne Romeu:

A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais, "Márcio" invadia minha cela para "examinar" meu ânus e verificar se "Camarão" havia praticado sodomia comigo. Este mesmo "Márcio" obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período foi estrupada duas vezes por "Camarão" e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros.

Enquanto cometia esses atos, a ditadura mostrava-se ao povo como guardiã da "civilização cristã" contra o "comunismo ateu". Forjava depoimentos e quebrava de tal modo a resistência psicológica de alguns presos que eles se apresentaram na televisão, durante o governo Médici, como "terroristas arrependidos", dizendo que eram bem tratados e que a esquerda cometia atrocidades.

Um balanço ainda precário registra a prisão de 50 mil pessoas. Pelo menos 20 mil sofreram torturas. Além dos 320 militantes da esquerda mortos, outros 144 continuam "desaparecidos". No fim do governo Geisel, existiam cerca de 10 mil exilados. As cassações atingiram 4.682 cidadãos. Foram expulsos das faculdades 243 estudantes.

[...] A ditadura militar morreu lentamente a partir do desmascaramento do "milagre econômico". Começou a agonizar no governo Figueiredo. Já era cadáver no período Sarney. Foi enterrada precariamente nas eleições de 1989.

Hoje, há democracia.

Isso basta?

CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 2006. p. 176-188.

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