"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 17 de novembro de 2013

Civilizações e patriarcado 2: as diferenças

Diana. Afresco na Villa Arianna, Stabia, Itália

As primeiras civilizações dos vales, próximo do Egito e da Mesopotâmia, ilustraram com clareza o potencial de diferenças que havia dentro do patriarcado. Enquanto a Mesopotâmia realçava a inferioridade das mulheres e sua sujeição ao controle masculino, a civilização egípcia dava a elas mais crédito, ao menos nas classes altas, e vivia a experiência de várias rainhas poderosas. A bela Nefertiti, como esposa do faraó Aquenaton, influiu em disputas religiosas durante seu reinado. Mais tarde, Cleópatra desempenhou um papel poderoso, embora abortado, como rainha egípcia, lutando para modificar os controles do Império Romano. As mulheres eram também retratadas com esmero na arte egípcia, e as providências para seu enterro podiam ser elaboradas (embora nunca rivalizassem com as de homens poderosos). Tanto as mulheres como homens podiam se tornar estrelas no corpo da deusa celeste Nut, uma maneira em que a vida após a morte se manifestava. Não havia dúvida sobre o patriarcado egípcio. Um escritor egípcio, Ptah Hotep, deixou isso claro, por volta de 2000 a.e.c., ao escrever que, “se você for um homem de reputação, busque uma mulher de família, e ame sua mulher em casa, como convém. Alimente-a, vista-a... mas não deixe que ela domine”. Entretanto, no cotidiano e no social, o sistema egípcio diferia.

Nem todas as sociedades agrícolas permitiam a poligamia; a Índia diferia da China e do Oriente Médio. Algumas sociedades traçavam a descendência das crianças a partir da mãe – como na lei judaica – em vez do pai. Isso não evitava a desigualdade, mas dava à maternidade uma importância cultural e legal maior. Os códigos legais podiam variar muito em função dos direitos de propriedade da mulher ou sua capacidade em abandonar um casamento infeliz. Representações culturais variavam amplamente. Em algumas religiões, as deusas desempenhavam um papel poderoso e vital, ao passo que em outros sistemas culturais os princípios masculinos dominavam inteiramente. A China, sem tanta ênfase na religião, oferecia escape menos simbólico para as mulheres do que a Índia, com seu forte interesse nas figuras das deusas, ou o Mediterrâneo, com seu politeísmo diversificado em termos de gênero.

As variações afetavam também os homens. Sociedades com religiões fortes, como a Índia, podiam ter em alta conta sacerdotes e figuras masculinas sagradas, em contraste com sociedades como as do Mediterrâneo clássico, que tendiam a enfatizar as qualidades militares e atléticas como ideais para os homens. [...] Na Grécia e em Roma, homens da alta classe, com freqüência, escolhiam garotos como protegidos e amantes. Isso não entrava em conflito com papéis familiares normais.

As diferenças possíveis de sistemas patriarcais foram mostradas claramente nas três principais civilizações clássicas. A China instituiu o mais completo patriarcado, como parte da ênfase de Confúcio na hierarquia e na ordem. O homem na família era, em princípio, como o imperador na sociedade: ele governava. As mulheres eram instadas a ser subservientes e eficientes nas habilidades domésticas. [...]

O sistema da Índia contrastava com este. As mulheres eram consideradas inferiores; os pensadores indianos discutiam [...] se a mulher teria de ser reencarnada como homem a fim de avançar espiritualmente, caso tivesse levado uma vida digna, ou se ela poderia prosseguir diretamente para um domínio mais elevado. Os casamentos eram arranjados com cuidado pelos pais para assegurar os objetivos maiores da família, geralmente quando as meninas e os meninos eram bem jovens. Das mulheres se esperava que servissem aos pais e depois aos maridos fielmente. Em contraste com a China, no entanto, a cultura da Índia valorizava a inteligência e a beleza das mulheres. Amor e afeição mereciam muito crédito, o que poderia ligar mulheres e homens informalmente, apesar da desigualdade básica. [...] A ênfase no confinamento doméstico das mulheres também era menor na Índia clássica.

A civilização clássica no Mediterrâneo apresentou ainda um terceiro caso. Uma forte ênfase no racionalismo na filosofia e na ciência forjou uma tradição de distinguir traços intelectuais, considerados masculinos, e traços mais emocionais e menos mentais, atribuídos às mulheres. Pensadores gregos apregoavam um bom tratamento para a mulher, ao mesmo tempo em que reforçavam sua inferioridade e seus papéis altamente domésticos. A atuação pública, assim como papéis atléticos, eram reservados aos homens. Estuprar uma mulher livre era crime, mas merecia punição menor do que seduzir uma esposa – pois isso envolvia conquistar a afeição e lealdade que ela devia ao marido. No entanto, algumas mulheres possuíam propriedade; sua presença pública era maior do que na China. E as condições melhoraram no período helenístico, pelo menos na alta classe, com a participação das mulheres em atividades culturais e comerciais (embora sob a guarda masculina).

Além do mais, em Roma, as condições das mulheres novamente se aprimoraram com o tempo – desafiando o padrão geral [...]. A sociedade romana em seus primórdios impunha duras punições sobre as mulheres, por exemplo por contravenções sexuais. [...] As regras das leis romanas posteriores, no entanto, somadas a um desejo de encorajar a estabilidade da vida familiar, trouxeram alguns aprimoramentos. Os poderes do marido foram substituídos pelo estabelecimento de cortes de família, compostas de membros tanto da família de origem da esposa quanto do marido, em casos de disputa ou acusação. As mulheres eram livres para aparecer em público e participar da maioria dos entretenimentos. Ainda que elas fossem punidas por adultério com a perda de um terço de suas propriedades, a punição era relativamente suave comparada com outras civilizações patriarcais. Por fim, a literatura romana, assim como a grega, registrou inúmeras histórias de deusas ativas e extravagantes, assim como deuses.

[...]

Ao fim do período clássico, a possibilidade de troca estava esquentando. Problemas com o sistema político, particularmente em Roma e na China, abriram novas possibilidades de contatos, tanto por meio de invasões externas como por intermédio de missões religiosas. Vários povos nômades invadiram território de civilizações estabelecidas – os hunos da Ásia Central na China e depois Índia, tribos germânicas adentraram o sul da Europa. Missionários budistas e cristãos buscaram fazer conversões em países estrangeiros, tanto em outras civilizações como em regiões politicamente menos organizadas como a Ásia Central ou o norte da Europa. O que tinha sido uma experiência periódica durante as primeiras civilizações e o período clássico, agora, por meio de invasões, guerras e comércio limitado, tornava-se comum, à medida que vários povos se deparavam com outras maneiras de se organizarem os padrões de gênero.


STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2012. p. 35-40.

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