"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Reformas e dissidências

Em 1521, produziu-se a ruptura de Lutero com Roma. O ponto fundamental de sua reivindicação, compartilhado pelas três grandes correntes reformadoras “respeitáveis” (luteranos, calvinistas e anglicanos), era que se devia considerar a Bíblia como a autoridade máxima em matéria de fé (por isso, era necessário traduzi-la nas línguas vulgares, com o objetivo de colocá-la  ao alcance dos fiéis), sem deixar que sua mensagem se mediatizasse com tradições de qualquer tipo. Consideravam, ainda, que a graça de Deus era a única fonte de salvação, sem que as penitências, procissões e indulgências (que consistiam na “compra” do favor divino), nem as missas para os defuntos tivessem qualquer tipo de validade. Calvino iria mais além ao negar que o homem pudesse ganhar a salvação com suas obras e afirmar que Deus já havia eleito previamente quem desejava salvar: que os homens estavam predestinados.

O Muro dos Reformadores. Da esquerda à direita: Guilherme Farel, Calvino, Teodoro de Beza e John Knox

Além destas correntes da “reforma dos príncipes” – como foi denominada pela dependência estabelecida entre reformadores e poderes públicos – houve, entretanto, outra “reforma comunal”, que propunha a autonomia da comunidade local, ao menos nas questões religiosas. A fé era considerada nestes casos como uma questão pessoal, que não podia ser colocada sob o controle de uma Igreja ou de um Estado, e os fiéis exigiam o direito de nomear e destituir seus pastores. Os anabatistas, chamados assim porque consideravam que o batismo devia ser recebido – ou tornar a ser recebido – na idade adulta, com a plena consciência, liam, no evangelho, o prognóstico de uma sociedade mais fraternal e igualitária, propugnando ideias de renovação social que chegariam, inclusive, a uma proposta de comunhão de bens, como a que se quis estabelecer no “reino dos santos” de Münster, primeiramente, ou nas comunidades que tentaram reconstruir a nova Jerusalém na Moravia. Todos estes grupos foram ferozmente perseguidos tanto por católicos quanto pelas correntes reformadas “respeitáveis”, assustados, uns e outros, pela ameaça radical que representavam. O conformismo político e social das correntes da “reforma dos príncipes” levou à reação da chamada “segunda reforma”, que expressava a reação dos grupos que queriam ir mais além. O florescimento de seitas radicais – quakers, ranters, partidários de quinta monarquia, etc. – durante a revolução inglesa do século XVII seria seguido, no século XVIII e princípios do XIX, pela dos diversos grupos dissidentes que fundaram igrejas dos pobres contra a Igreja oficial do Estado e dos ricos. O mais importante destes grupos, que recolheu elementos da herança cultural dos anabatistas da Moravia, foi o metodismo de John Wesley; porém, na Inglaterra, e principalmente nos Estados Unidos, apareceu uma série de grupos no século XIX que compartiam projetos comunitários com uma visão profética que anunciava a iminente “segunda vinda” do Messias.

A Igreja de Roma, por sua parte, realizou sua própria reforma no Concílio de Trento (1545-1563), convocado para “assegurar a integridade da religião cristã, para a reforma dos costumes, a concórdia entre os príncipes e os povos cristãos, e para lutar contra as empresas dos infiéis”. A fixação das regras, iniciada com a redação de um catecismo que compreendia e explicava as “verdades da fé”, seria seguida por uma campanha de reconquista interior que se desenvolveu especialmente no século XVIII, com um número considerável de missões rurais que tentavam conseguir o enquadramento das massas camponesas numa ordem regular de vida controlada pela paróquia.

Ao mesmo tempo que retrocedia a causa da Reforma na Europa, a Igreja católica empreendia a conquista religiosa da América, onde, aliada ao poder político da monarquia espanhola, protagonizou a “conversão” forçada dos povos indígenas, num processo que foi além do terreno das crenças, já que implicou na transformação completa da vida dos novos cristãos dentro do marco político colonial, submetidos a uma autoridade que controlava a vida e a consciência com os mesmos métodos repressivos. A expansão fora da Europa permite explicar que o catolicismo romano tenha, hoje, maior número de adeptos que a soma das demais denominadas religiões cristãs.


FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: Edusp, 2000. p. 306-309.

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