"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 1 de dezembro de 2013

O fanatismo na História

Fanático, termo cunhado no século XVIII, denomina pessoas consideradas partidárias extremistas, exaltadas e acríticas de uma causa. O que identifica o fanático é a certeza absoluta e incontestável que ele tem a respeito de suas verdades e isto pode representar um grande perigo para os outros. Ao se pretender detentor de uma verdade supostamente revelada especialmente para ele pelo seu deus, o fanático não tem como aceitar discussões ou questionamentos racionais com relação àquilo que apresenta como seu conhecimento; a origem divina de suas certezas não permite que argumentos apresentados por simples mortais se contraponham aos seus. Pode-se argumentar que as palavras de Hitler ou as de Mao mobilizaram fanáticos tão convictos como os religiosos e não tinham origem divina. Ora, de certa forma, esses líderes eram cultuados como deuses e suas palavras não podiam ser objeto de contestação, do mesmo modo que ocorre com qualquer conhecimento de origem especificamente religiosa. A irracionalidade é, portanto, condição essencial do fanatismo. Ao se sentar para debater ideias, de forma receptiva, o indivíduo mostrará que não faz parte de um grupo de fanáticos.

É possível estudar as manifestações de fanatismo na história, inclusive em períodos anteriores à Era Moderna, sem incorrer em anacronismos, se procurarmos compreender o fenômeno lançando mão de uma cuidadosa investigação histórica. Como se sabe, o olhar que lançamos sobre o acontecido é, necessariamente, o de alguém que vive numa determinada época, em um determinado lugar, e é fruto das contingências decorrentes dessas determinações. Assim, ao estudar a história de séculos passados (a partir de nossa perspectiva do século XXI) podemos identificar, em vários contextos, sinais de fanatismo (mesmo que o termo ainda não existisse na época). Afinal, a irracionalidade e a existência das tais supostas verdades reveladas não são coisa recente...

Sistematizamos um conjunto de manifestações de fanatismo baseadas em quatro grandes categorias de justificativas ideológicas adotadas pelos fanáticos: as religiosas, as racistas, as políticas e as “esportivas”.

A religião serviu e serve como explicação/pretexto para perseguições, torturas e assassinatos em diversos momentos da história, dos cruzados medievais aos fundamentalistas do século XXI. Afinal, sob o pretexto de ordens emanadas pelo próprio e verdadeiro (na concepção deles) deus, qualquer crime se justifica...


O massacre de São Bartolomeu, François Dubois

O racismo (contra negros, semitas, orientais, etnias minoritárias) provocou e provoca muitas humilhações e derramamento de sangue. Violência e escravidão têm sido instrumentos de fanáticos em diferentes sociedades contra raças supostamente inferiores. Em pleno século XX, o fanatismo atingiu importantes setores do povo alemão que se deixou seduzir pelo nazismo: pessoas eram confinadas em campos de extermínio, onde foram escravizadas, torturadas e mortas, por uma suposta inferioridade racial congênita. As manifestações mais conhecidas de fanatismo racista são as atividades da Ku Klux Klan, do nazismo e do famigerado e atuante neonazismo.

A política foi e é desculpa para inúmeras violências contra opositores, manifestações agressivas de chauvinismo, opressão e terrorismos – a partir de “verdades definitivas” tão diversas como a comunista, a imperial, a libertária, a do “mundo livre”, a nacionalista. O fanatismo político é facilmente identificável nos expurgos stalinistas, na ação camicase, no macarthismo, na Revolução Cultural da China e no terror com finalidades políticas. Fanáticos políticos têm horror a debates de ideias, preferem fazer os adversários se calar.

E torcer pelo futebol surge como o mais novo fundamento para atitudes antissociais e violências, não só contra simpatizantes dos times “inimigos”, mas também contra determinados grupos étnicos, mulheres, homossexuais e migrantes. Os hooligans e os membros das torcidas organizadas no Brasil são, evidentemente, sujeitos fanáticos. Com certa constância verificamos agressões seguidas de morte nos embates entre torcedores. [...]

O machismo (misoginia, homofobia) – motivação para violências específicas contra mulheres e homossexuais – aparece no interior de várias formas que assumem as justificativas acima mencionadas.

Num tempo de perplexidade, em que olhamos para as conquistas da humanidade, por um lado, mas vemos, por outro, os homens exibindo sua face mais cruel, é muito importante analisar várias das diferentes faces que o fanatismo adquiriu ao longo do tempo e em contextos distintos. Numa época de homens-bomba, atentados terroristas, manifestações racistas, ações extremistas, pensar o fanatismo é atual, relevante e urgente.


PINSKY, Jaime. Por que gostamos de História. São Paulo: Contexto, 2013. p. 31-33.

NOTA: O texto "O fanatismo na História" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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