"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O significado da Revolução Iraniana

A revolução iraniana concentrou todos as contradições do desenvolvimento histórico do país, em especial em sua fase moderna e contemporânea, como semicolônia dos imperialismos russo e britânico, no século XIX e na primeira metade do século XX, e do imperialismo norte-americano, depois da Segunda Guerra Mundial. A questão democrática (luta contra a monarquia) e a questão agrária, não resolvidas pelo desenvolvimento capitalista raquítico e dependente do país, puseram-se contra o pano de fundo do desenvolvimento desigual e combinado de sua economia, que gerou uma moderna indústria petroleira, e um proletariado que, embora minoritário, ganhou forte poder econômico e político. A classe operária estava concentrada nos centros de produção de petróleo para exportação e na área de serviços de todo tipo, além da indústria dirigida ao mercado interno, concentrada na periferia da capital, Teerã.

Em 1978-79, produziu-se no Irã o vertiginoso desenvolvimento de um movimento revolucionário, no qual, inicialmente, a classe operária lutou pela direção da mobilização de todos os explorados, movimento que desmantelou o Estado e criou uma situação  revolucionária. A revolução no Irã, no entanto, debutou como um vasto movimento democrático dirigido pela burguesia nativa. Esse foi o caráter do movimento em seus inícios, quando tinha seu centro na cidade santa de Qom, onde a hierarquia religiosa xiita se pôs à cabeça da mobilização de massas contra o regime ditatorial do xá. Durante dois anos, o caráter e o ritmo do movimento – sua direção – foram garantidos e controlados pela hierarquia islâmica, financiada pela burguesia comercial e financeira do Baazar.  O enfrentamento entre esse setor e o regime monárquico dominava o centro da cena política, bloqueando uma ação histórica independente das massas.


Manifestação contra o xá, 1978

A intensificação do enfrentamento teve, porém, conseqüência não desejada por nenhuma das frações burguesas ou clericais em disputa: a crescente afirmação do proletariado no interior do movimento democrático e antiimperialista. Uma transformação do processo revolucionário aconteceu quando o proletariado começou a combater com seus próprios métodos (greves, ocupação de fábricas) o regime do xá. A ampliação do combate democrático levou a classe operária a tornar-se mais independente da direção burguesa e religiosa.


Greve dos trabalhadores do petróleo, 1978

O centro geográfico do movimento deslocou-se então para as regiões petroleiras de Abadan e para a própria capital, Teerã. Foi a partir da greve geral petroleira de outubro de 1978 que começou a contagem regressiva do governo do xá. E foi também a partir dessa data que começaram a se desenvolver os comitês operários nos centros petrolíferos e no cinturão industrial de Teerã, além de 105 comitês de bairro na própria capital. As ações testemunhavam a vontade do movimento operário de imprimir seu selo de classe à revolução democrática, transformando-a.

Foi a transformação interna da mobilização revolucionária que determinou que a original intransigência da direção khomeneista fosse cedendo lugar à vontade de saída nos quadros do regime, uma transição que preservasse o Exército, mas que incluísse também as frações burguesas que haviam sido excluídas.

A tentativa de conciliação com o antigo regime (que acenara até com a possibilidade de uma monarquia constitucional) foi evidente quando o primeiro-ministro Barzagan confessou a existência de um acordo, do qual um aspecto era a nomeação de Chapour Bakhtiar (membro da Frente Nacional de Oposição) como primeiro-ministro, pelo próprio xá: “Estimávamos que devíamos organizar, depois da partida do xá e da instauração de um Conselho da Coroa, eleições gerais e livres, que teriam aberto a via para a designação de uma Assembléia Constituinte, para transformações radicais, e depois a transferência do poder”. Chapour Bakhtiar, presidente do Conselho, teria apoiado esse projeto, do mesmo modo que os chefes do Exército e da polícia, segundo o bem informado correspondente sur place de Le Monde, em 15 de maio de 1979.


O povo em armas, Teerã, fevereiro de 1979

Mas o movimento proletário expresso na greve geral já possuía um alto grau de independência em relação à direção burguesa, e tinha por trás um colossal movimento de massas. Sua expressão foi a insurreição popular de 10, 11 e 12 de fevereiro de 1979, que quebrou o Exército imperial e assistiu à tomada de armas por parte do povo. Isso liquidou os planos de transformação pacífica da monarquia. “Eu não tinha ainda declarado a guerra santa”, disse Khomeini posteriormente. Por isso, a repressão contra a esquerda e o movimento organizado dos trabalhadores começou imediatamente depois de vitoriosa a revolução democrática antimonárquica, dando papel decisivo às milícias islâmicas. Estas foram depois transformadas em Guardiões Revolucionários, conquistando enorme poder político no novo Estado, com o qual a hierarquia xiita teve que contar. O que, até certo ponto, limita o próprio poder dos mulás.


Soldados em confronto com estudantes revoltosos nos portões da Universidade de Teerã, 1978

Ainda em 1979, quando a direção burguesa queria dar por terminada a revolução, para as massas ela recém-começava. A auto-organização operária se manteve, pelo menos, até 1981 nos principais centros industriais e fez pairar o fantasma de uma segunda revolução, social, mais radical, não só no Irã, mas em toda a região, na Arábia Saudita em primeiro lugar. Os comitês khomeneistas começaram então a competir, inicialmente e depois a chocar abertamente, até mesmo militarmente, com os comitês independentes surgidos da insurreição popular. O confronto estendeu-se desde setembro de 1978 até fevereiro do ano seguinte. O primeiro-ministro Barzagan resumiu a situação nestes termos, dirigidos aos correspondentes estrangeiros: “Vocês não concebem a que fantástica pressão popular estamos sendo submetidos, todos, sem exceção.”

A mobilização revolucionária impediu um acordo pacífico entre a burguesia nacional e o imperialismo, que até mesmo buscou um terreno de entente com a própria hierarquia xiita. Khomeini chegou a afirmar que o fuzilamento de homens do regime do xá tinha função preventiva, pois, caso o novo regime não executasse alguns altos personagens imperiais, “o povo teria realizado um verdadeiro massacre”.


Clérigos e soldados dão as mãos em sinal de amizade, fevereiro de 1979

A força social da classe operária e dos setores mais pobres e explorados, porém, não se transformou em força política independente, pela política carente de independência em relação ao clero xiita ou à burguesia bazaari das principais correntes de erquerda, os fedayyin marxistas, os mujaheedeen islamo-marxistas e, sobretudo (pela sua força nos sindicatos e centros petroleiros) o Tudeh. O partido, dependente da burocracia da União Soviética, revelou uma posição reacionária, por sua política mundial, nos momentos decisivos do enfrentamento antiimperialista (ocupação da embaixada norte-americana em Teerã).

Diante do temor e da fraqueza da burguesia iraniana diante do movimento dos explorados, da dissolução do Exército imperial e da carência de independência política real da classe operária, o clero xiita pôde jogar papel de arbitragem que se estendeu por todo um período histórico, chegando até hoje. Essa arbitragem o pôs à cabeça do Estado islâmico, no qual as instituições representativas, eleitas em escrutínio, estão subordinadas a instâncias não-eleitas (pela maioria da população) próprias à instituição religiosa, configurando um regime de natureza bonapartista-teocrática.

Logo depois da revolução, a guerra contra o Iraque atenuou as suas contradições internas e serviu também como álibi já não só ideológico, mas também militar, para a repressão contra a esquerda e o movimento operário independente. O fracasso do empreendimento bélico iraniano (afinal, o verdadeiro motivo do enforcamento de Saddam Hussein, vinte anos depois) fortaleceu o bonapartismo xiita e deu o lugar central do Estado a sua milícia armada.

A partir de meados da década de 1980, o declínio dos preços internacionais do petróleo acrescentaria um fator econômico à queda do poder da classe operária. Com o desemprego, a queda da renda nacional e as perdas salariais, a luta dos trabalhadores retrocedeu e voltou a seus níveis mais elementares.

Os acontecimentos atuais demonstram que, apesar de suas inúmeras limitações, a revolução iraniana de 1979 alterou decisivamente o equilíbrio político do Oriente Médio, e se projetou como um poderoso fator de crise política mundial. A população do Irã, que era de 34 milhões na época da Revolução Islâmica, pulou para 70 milhões, hoje, sendo que 65% dela tem menos de 25 anos de idade. Esses jovens formam a população mais instruída do país de todos os tempos, pois o índice de alfabetização nunca foi tão alto, tendo passado de 59% para 82%, nos últimos vinte anos. Mas não é fácil ter vinte anos no Irã, hoje: 40% dos jovens estão desempregados.

As novas gerações iranianas encaram novos desafios, que põem novamente o Irã no centro da tormenta política mundial. A “questão iraniana” se projeta para todo o Oriente Médio, demonstrando que a solução dos problemas da própria revolução tem por palco decisivo a arena internacional. Um combate antiimperialista conseqüente terá o efeito de trazer à baila as contradições políticas internas do país e, sobretudo, as suas contradições de classe. A experiência política do último quarto de século será decisiva. De sua assimilação depende a retomada do fio condutor com toda a longa tradição revolucionária do país de Mazdak e Sultanzadé, da reconstituição de seu elo histórico e de classe com a luta socialista dos explorados do mundo todo.

COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução Iraniana. São Paulo: UNESP, 2008. p. 139-143. (Revoluções do século 20).

NOTA: O texto "O significado da Revolução Iraniana" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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