"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Dos almofadinhas a Tarzã: ser homem!

Dois jovens descansando, Adolf Hölzel

Gilberto Freyre foi pioneiro em afirmar que, numa sociedade patriarcal, o corpo era marcado por diferenças de gênero. “Cada um como cada qual”, dizia o ditado popular. Nada de equívocos. Bordões como “a mulher que é, em tudo, o contrário do homem” sintetizavam as formas de pensar. Curvas, cabeleira comprida e adereços eram coisas femininas. Por seu lado, o homem moderno foi construir sua masculinidade. Masculinidade não mais fundada apenas na coragem e na honra, como no século anterior. Emergiam novos comportamentos: a palavra tomava o lugar do gesto, a competência se sobrepunha à dominação e a mediação substituía o confronto. Renunciava-se aos duelos, abandonava-se a faca, forjava-se um ideal novo: o homem educado, senhor de suas paixões, com hábitos burgueses deveria tomar a frente da cena, tornando-se um trabalhador útil ao país. Ele se vestiria de negro, impondo a formalidade. Acessórios? Só alfinetes de gravata, relógios, abotoaduras, chapéus e guarda-chuva. Nas mãos, a aliança. O bigode ou outras pilosidades faciais marcavam, nos rostos, a maturidade sexual. O esportista, no campo de futebol,  nas águas da piscina ou no ringue, ou o militar, em tempos de guerras, cada qual no seu uniforme, fazia suspirar as moças. Os espaços masculinos também se ampliavam. Escritórios, bares ou sindicatos alimentavam redes de sociabilidade e consumo. Jornais e revistas expandiam o espectro de possibilidades: idas ao Jockey Club ou aos estádios. Consumo de Dynamogenol ou NutrioN para aumentar as forças “nas lutas da existência”. Praias e piscinas esculpiam os corpos masculinos por meio do fisioculturismo, colorindo-os com “raios de sol”.

Levantando pesos com um braço, Eugène Fredrik Jansson 

A valorização da força física como fator de desenvolvimento da sociedade engendrava outras formas de práticas, agora também fundadas em conceitos estéticos. O corpo musculoso e forte tornava-se signo de beleza e era revelador de boa saúde. Entrava em cena halteres e pesos. Valores como resistência, autoridade e competição simbolizavam a afirmação da masculinidade.

Puxando peso com os dois braços, Eugène Fredrik Jansson 

Tais mutações escoravam-se nas mudanças econômicas. A prosperidade alimentava os sonhos de ascensão social. Junto a isso, havia a aspiração de alargar horizontes e formar melhores brasileiros. Na vida privada, a atenção crescente dada à família, aos filhos e ao casamento exige uma adequação entre a casa e a rua. Isso porque a imprensa promovia a nova masculinidade, associando-a a “caráter, trabalho duro e integridade”. O bom macho era também bom pai de família e provedor.

O trabalho, Pierre Puvis de Chavannes

Na contramão desse ideário encontravam-se os homens que fugiam às regras na conduta e na indumentária. Qualquer sugestão de feminilidade era ferozmente perseguida. Revistas como a Selecta ou a Fon-Fon, entre os anos 20 e 30, ridicularizavam as “figuras dúbias” de “almofadinhas e libélulas” com “cabelos lustrosos e rosto polvilhado”. Representantes de uma época decadente, tais homens eram vistos como doentios e indecorosos: “gostam de usar calças muito apertadas, para que lhes vejam o arredondamento das nádegas”, denunciava o médico Ernani de Irajá. Eram o oposto do “burguês bem-sucedido”.

Nu reclinado, Carlos Baca-Flor

Discussões sobre a origem ou as causas dos “estados inter-sexuais” apaixonavam médicos. Havia quem tentasse explicar os “missexuais” ou a mistura dos dois sexos em um. Mas não importavam as interpretações. A homossexualidade era considerada, além de imoral, uma anormalidade. Durante os anos 30, o médico Leonídio Ribeiro consagrou-se graças a estudos sobre endocrinologia, relacionando-a com as “anomalias do instinto sexual”. Estas seriam o reflexo de mau funcionamento das glândulas. O remédio era o transplante de testículos, inclusive de carneiros ou de grandes antropóides. Afinidades entre homossexualidade e criminalidade? Todas. O crime era uma decorrência da paixão que “invertidos” nutriam entre si. Num quadro de guerras mundiais e de reforço do nacionalismo, homossexuais transformavam-se em bodes expiatórios.

Nu masculino, Lucílio de Albuquerque

“O homossexualismo é antissocial. É a destruição da sociedade; é o enfraquecimento dos países [...] a maioria dos pederastas não se casa, não constitui família; portanto, não contribui para o engrandecimento, para o desenvolvimento da sociedade e do país. Se o homossexualismo fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo”, apregoava o médico Aldo Sinisgalli. A repressão e o preconceito contra a diferença só faziam aumentar.

O mundo masculino defrontava-se, assim, com novas dimensões que o obrigavam a adotar uma forma ideal. A exibição corporal incentivada pelos novos tempos deveria expressar os papéis sociais aceitos para homens e mulheres. Eles deviam demonstrar atitude, atividade, postura propositiva; elas, ao contrário, apenas leveza e suavidade. Elaborava-se a masculinidade contrastando-a com a feminilidade. E o cinema, notadamente o americano, só veio jogar água no moinho das diferenças de gênero. O espetáculo do herói e o culto ao corpo alimentavam códigos estéticos que bombardeavam os machos brasileiros com estereótipos.

Balneário naval, Eugène Fredrik Jansson

Segundo alguns autores, Hollywood ajudou a construir não só comportamentos adequados como também uma identidade nacional, no início do século X. Tratava-se da difusão de ideais e da utilização de heróis como força de expressão. Nas telas, eles encarnavam a revanche da guerra, a condenação aos desajustes da sociedade, os guerreiros virtuosos do esporte.

Atletas começam a participar de filmes como atores, entre os quais Johnny Weissmuller, ex-atleta de natação e o mais famoso Tarzã, além de alguns famosos lutadores de boxe. Encarnando a imagem de “lutadores”, ainda tinham que ser sexualmente ativos e sustentar financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder – quando não a força e a violência física – no meio familiar e no trabalho. Marcas corpóreas como cicatrizes, cortes, arranhões, tatuagens, mutilações comprovavam o desempenho do homem em sua trajetória de heroísmo; eram provas de uma história exibida com orgulho, impondo respeito. Eram as demonstrações concretas da valentia e da luta, base da cumplicidade entre machos e contraste com os corpos de pederastas e “missexuais”.

Nu masculino, Lucílio de Albuquerque

A questão da virilidade associada às lutas físicas ou morais expandia-se nas metáforas lingüísticas utilizadas constantemente nos conflitos: “mostrar o pau”, “meter o pau”, “botar o pau na mesa”. O órgão masculino era comumente definido como “pau”, “porrete”, “pistola”, “canhão”, “espada”.

Ginasta de anel, Eugène Fredrik Jansson

Essa ideia de virilidade surgia ainda nos esquemas maniqueístas típicos dos filmes de então. Neles, o oponente, representado como cruel, desonesto e supostamente mais bem treinado, mais forte e com mais condições de vitória, desfilava com um sem-número de mulheres retratadas como fúteis, mais interessadas em seu físico e em seu dinheiro do que em algo “sério”, como a constituição de um lar. Ao mesmo tempo, as mulheres “honestas” sabiam que seu papel era servir de apoio para a carreira do marido, um herói, e não se prestar ao papel de “pistoleiras”. Para a figura feminina, recuperava-se a velha oposição entre mães e prostitutas, dualidade característica da sociedade patriarcal.

Homem jovem nu, Eugene Frederik Jansson

Isso não foi tudo. A partir dos anos 40 e 50, revistas como O Cruzeiro apostavam nas notícias sobre esse novo homem identificado com as mudanças do tempo. Tópicos sobre concursos de fisioculturismo pipocavam: “Bonitões em desfile”, anunciava o Campeonato Nacional de Melhor Físico de 1949. A manchete “Músculos em revista” tratava do 1º Campeonato Nacional de Levantamento de Pesos e a escolha do Melhor Físico de 1950. As matérias eram ricamente ilustradas com fotos, ressaltando-se os “atletas” em diversas poses e em trajes mínimos, impressionantes até para os dias de hoje. A intenção da revista era explorar a sensualidade de corpos masculinos, algo, diga-se, definitivamente novo!

PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. p. 155-159

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