"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Esconder os cabelos das mulheres: a longa história do véu

Mulher em pé segurando seu véu. Beócia (?). Figurino de terracota, ca. 400-375 a.C. 
Foto: Jastrow

O véu era de uso corrente no mundo mediterrâneo antigo. Mas sem obrigação religiosa. É certo que em vários ritos sacrificais greco-romanos deve-se cobrir a cabeça; mas isso vale para os dois sexos. Nem o Antigo Testamento nem os Evangelhos fazem exigências quanto a isso.

O apóstolo Paulo inova. Na primeira Epístola aos Coríntios (11, 5-10), ele escreve que, nas assembleias, os homens devem se descobrir e as mulheres se cobrir.

Toda mulher que ora ou profetiza, não tendo a cabeça coberta, falta ao respeito ao seu senhor, porque é como se estivesse rapada. Se uma mulher não se cobre com um véu, então corte o cabelo. Ora, se é vergonhoso para a mulher ter os cabelos ou a cabeça rapada, então que se cubra com um véu.

Porque a mulher foi criada para o homem, “a mulher deve trazer o sinal da submissão sobre sua cabeça, por causa dos anjos”. As mulheres devem calar-se nas assembleias. Usar o véu ao profetizarem. Usar o véu como sinal de dependência: “a mulher deve trazer sobre sua cabeça o sinal da autoridade”.

Depois de Paulo, os Pais da Igreja acrescentam exigências. Tertuliano, de sua parte, dedica dois tratados ao que se tornou uma preocupação maior da cristandade nascente: Le Voile dês Virges e La Toilette dês femmes.

Assim, o véu reveste-se de significações múltiplas, religiosas e civis, para com Deus, e para com o homem, seu representante. Ele é sinal de dependência, de pudor, de honra.

O véu é sinal de autoridade: já em Roma, uma mulher casada que sai sem seu lenço, a rica, pode ser constrangida ao divórcio. As moças não usam véu: reivindicam não usá-lo. A mulher casada é propriedade de alguém, logo deve ser velada. O véu é instrumento de pudor. Tertuliano considera as toucas e os lenços insuficientes. É preciso velar o corpo das mulheres, e sua cabeleira, objetos de tentações.

Sinal de virgindade, o véu figura o hímen. O véu da noiva é um véu nupcial que apenas o marido deve retirar, assim como é ele que deflora o hímen. Significa oblação, oferenda, sacrifício da esposa.

Ou ainda, véu de oblação da religiosa, que, no dia em que professa, oferece sua cabeleira a Deus e põe o véu para ele. A Igreja faz do véu das religiosas uma obrigação, o selo de sua castidade e de seu pertencimento a Deus, sobretudo a partir do século IV. A Igreja impõe o véu às religiosas e aconselha-o às demais mulheres; devem, pelo menos, ter a cabeça coberta.

Essa prescrição, por vezes, é difícil de aceitar. Marguerite Audox, em seu romance autobiográfico, Marie-Claire, põe em cena uma religiosa que sofre com essa exigência: “Quando me visto, parece que entro numa casa que está sempre às escuras”, diz a irmã Desiree dês Anges; à noite, ela tira, com prazer, hábito e véu e deixa livres os seus cabelos, para grande escândalo de suas “irmãs”, que suspeitam de que ela tenha traído seus votos de castidade. Véronique “julgou que era vergonhoso para uma religiosa deixar ver seus cabelos”.

A questão do véu foi um ponto central nas discussões do Concílio Vaticano II, entre os clérigos e as religiosas, que pediam para tornar mais leves suas roupas, tão pouco compatíveis com as exigências da vida moderna. Fiéis aos Pais da Igreja, os clérigos, eles próprios dispostos a se laicizar, resistiram e mantiveram a obrigação do véu, simplificando-o, no entanto.

As mulheres de Argel em seu apartamento, Eugène Delacroix

As relações entre o islã e o véu são controversas [...]. Segundo Malek Chebel, o Corão não estabelece nenhuma obrigação a esse respeito. Mas o islã cresceu no seio de culturas mediterrâneas que ocultam as mulheres, as mantêm confinadas (gineceu, harém, mulher escondida da cultura árabe-andaluza). O uso do véu pelas próprias mulheres é complexo, como o mostram, para as argelinas, os romances de Assia Djebar. Num mundo de homens, o véu é, para elas, a única possibilidade de circular no espaço público. Na época da Guerra da Argélia, a “mulher sem sepultura” de Cesareia (Cherchell) dissimula suas ligações com o maquis sob o véu. Hoje, as mulheres iranianas, mesmo sendo muito liberadas, usam o véu para se proteger, abrigar-se do olhar, do poder e dos homens. Sob o véu, elas se vestem como querem.

Mas, e talvez seja um sinal de resistência à arabização, as mulheres berberes não usam véu. As feministas do Magreb, embora minoritárias, fazem da recusa ao uso do véu uma afirmação de sua liberdade: é o que acontece no Marrocos.

Ainda mais quando o fundamentalismo pretende submetê-las a isso. O véu é um símbolo de dominação das mulheres e de seu corpo. Eu te ponho um véu porque tu me pertences, Compreende-se que seja um objeto de discórdia, que, na França, está presente tanto no movimento de reivindicações Ni putes ni soumises [Nem putas nem submissas] quanto aos debates em torno da lei sobre a proibição do véu na escola pública, os quais dividiram as próprias feministas.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 56-58.

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