"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 18 de outubro de 2015

O Guarani, um cavaleiro romântico nas florestas brasileiras

Cabeça de índio, Henrique Bernardelli

"Guerreiro branco, Peri, primeiro de sua tribo, filho de Ararê, da nação goitacá, forte na guerra, te oferece o seu arco, tu és amigo."

O índio terminou aqui a sua narração.

Enquanto falava, um assomo do orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, filho das florestas, era um rei, tinha a realeza da força.

Apenas concluiu , a altivez do guerreiro desapareceu, ficou tímido e modesto, já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas, cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia.

D. Antônio o ouvia sorrindo-se do seu estilo ora figurado, ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança aos peitos maternos. [...]

[...]

- Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.

Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.

Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no ar, ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se aos seus pés submissa, vencida, escrava!

[...]

- Peri!... exclamou Álvaro.
- Não te zangues, disse o índio com doçura; Peri te ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira d'água, fica verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri é o vento que passa docemente para não abafar o murmúrio da corrente; é o vento que curva as folhas até tocarem n'água.

Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?

A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que reproduzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu.

[...]

Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta?

Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.

[...]

Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável:

- Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.

Era essa a ideia que ele há pouco acariciava no seu espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.

[...]

Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?

[...]

Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar.

Depois Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã; queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono celeste do Criador.

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: FTD, 1999. p. 147, 158, 176, 177, 421-423.

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