"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Uma manhã no coração da África

A lição de dança (Menino negro dançando), Thomas Eakins

Durante mil anos tu, negro, sofreste como um animal,
tuas cinzas foram espalhadas ao vento do deserto.
Teus tiranos construíram os templos mágicos e brilhantes,
onde preservam tua alma, onde preservam teu sofrimento:
o bárbaro direito dos punhos e o direito branco ao chicote.
Tu tinhas direito de morrer, também podias chorar.
Em teu totem esculpiram fome e cativeiros sem fim.
E no abrigo dos bosques aceitavas uma morte
horrivelmente cruel, oculta, desafiadora como galhos
de espinheiros e copas de árvores.
Cingindo teu corpo e tua dolente alma,
então puseram uma grande víbora traiçoeira em teu peito.
Em teu colo colocaram o jugo da aguardente.
Trocaram tua vida agradável pelo brilho das pérolas baratas,
tuas maravilhosas e incomensuráveis riquezas.
Da tua choça o tantã soava na escuridão da noite,
levando tristes lamentos para as fontes de rios poderosos
sobre jovens violadas, rios de sangue e lágrimas,
sobre barcos que zarpavam para o país, onde o homenzinho
se agita como num formigueiro, e onde o dólar é rei,
na terra condenada, que chamam de mãe-pátria.
Ali teu filho e tua esposa foram esmagados, dia e noite,
por um terrível moinho desapiedado, destroçando-os 
com terrível dor.
Eras um homem como outros. Pregaram para que cresses,
que o bom deus branco reconciliaria por fim todos os homens.
Pelo fogo sofreste, e cantaste os cantos plangentes
do mendigo sem lugar, que canta nas portas das casas.
E quando a loucura te possuiu e teu sangue ferveu na noite,
dançaste, gemeste,
como a fúria de uma tormenta nas palavras de uma
melodia humana.
De mil anos de padecimentos, surgiu a força de ti,
na voz metálica do jazz, um grito de libertação desconhecido,
que ressoou no continente como uma marulhada gigante.
O mundo inteiro, surpreendido, despertou aterrorizado
com o ritmo violento do sangue, o ritmo violento do jazz.
O branco empalideceu ante este novo canto,
que carrega tochas purpúreas na escuridão da noite.
Chegou a alvorada irmão, a alvorada! Olha nossos rostos.
Uma nova manhã desponta na nossa velha África.
Só nossa será a terra, a água, os rios poderosos,
que o pobre negro entregou durante mil anos.
E as resplandescentes luzes do sol brilharão de novo para nós, 
secarão as lágrimas em teus olhos e as cusparadas de tua cara.
Enquanto rompes tuas cadeias, os grilhões pesados,
os tempos malvados e cruéis irão para não voltar mais.
Um Congo livre e bravo surgirá da alma negra.
Um Congo livre e bravo, o florescer negro, a semente negra!

Patrice Lumumba

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