"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 11 de abril de 2016

O Estado monárquico e a cultura popular

Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia, Portinari

A monarquia absoluta era a grande promotora de festas públicas por ocasião do aniversário do governante, de casamentos ou nascimentos na família real, de celebração de eventos políticos. Esses festejos incluíam geralmente luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropas. Durante o período em que Portugal era a sede da monarquia competia aos governos de cada capitania incentivar essas celebrações. Depois de a Corte se ter transferido para o Brasil e ficado sediada no Rio de Janeiro ficou a cargo do intendente da Polícia organizar tais festas públicas. No tempo de Paulo Fernandes Viana ocorreram festejos por ocasião do casamento da princesa D. Leopoldina, mulher do Príncipe Real D. Pedro. Como escrevia o intendente, "era um dever da polícia entrar nestes objectos, não só pela utilidade que se tira em trazer o povo alegre e entretido, como provendo ao mesmo tempo o amor e respeito dos vassalos para com o soberano e sua real dinastia".

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Podemos avaliar o peso destas festas na sociedade colonial pelo cuidado em elaborar relatos dos seus vários momentos e também em publicar tais descrições em folhetos, ou nas páginas das gazetas do Rio de Janeiro e Baía. Lembremos, entre outras, a "Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente N. S. e toda a sua real família chegaram pela primeira vez àquela capital. Ajuntando-se algumas particularidades igualmente curiosas, e que diziam respeito ao mesmo objecto", publicada pela impressão Régia do Rio de Janeiro em 1810.

Nesta relação, o narrador, sob forma de carta, conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de S. A. R., tendo já havido antes outros seis dias de luminárias quando chegara a princesa viúva. Este elemento essencial do festejo público era mais complexo do que se poderia supor. Não bastava iluminar as casas e edifícios mais importantes da cidade; era necessário ainda criar ornamentos adequados, arquitecturas efêmeras logo destruídas quando a festa acabava.

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Nas festas públicas todos os grupos étnicos participavam, senão como actores, pelo menos como espectadores. Resta saber contudo se, no espaço urbano ou rural, havia lugar para a festa própria de cada etnia.

Deixar ou não os negros fazer os seus batuques e as suas danças dependia da maior ou menor flexibilidade dos governadores nas vilas e centros urbanos e dos senhores nas suas fazendas e engenhos. Essas actividades de lazer da gente de cor (das quais por vezes participavam os próprios brancos), por provocarem ajuntamentos perigosos, eram mal vistas pela população branca em épocas de crise e encaradas como demonstrações de uma sexualidade desenfreada pelos representantes da Igreja.

Batuque, Rugendas

Em 1779, na Capitania de Pernambuco, foi denunciada ao Santo Ofício a demasiada condescendência do então governador com os divertimentos dos negros: "Alguns governadores proibiram estas danças, e outras, que se fazem na terra, pelos naturais chamadas foffa, ou batuque entre homens, e mulheres que consiste em representar um acto torpe de fornicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos de pés, e mãos, com ditos inhonestos e para maior desgraça nos tempos presentes com ditos blasfêmicos, como 'Oh meu Deus, ora vamos para o Céu'". Estes gestos e palavras constituíam "incentivos para desonestidade ainda nos mais tementes a Deus, quanto mais nos miseráveis pecadores".


Negros dançando fandango (jongo) no Campo de Santana, Rio de Janeiro, Augustus Earle

Também no início do séc. XIX, na Baía, Luís dos Santos Vilhena condenava a excessiva tolerância com as diversões dos negros: "Não parece ser de muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente canções gentílicas, falando línguas diversas, e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda mais aos mais afeitos, na ponderação de consequências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Baía".


Negros tocando cabaça e pandeiro, Johan Nieuhof

O que perpassa nestes textos é a rejeição da cultura negra e a sua condenação, tendo como justificativa a "desonestidade" das suas danças ou a "barbaridade" dos sons produzidos pelos seus instrumentos. Além disso, sendo os cantares em línguas africanas, o branco não as podia entender e portanto temia-as. A estranheza perante o diferente levava ao medo, acentuado este quadro, em 1814, um levante de negros na Baía levou os brancos a exigir medidas repressivas mais severas do que aquelas que tinham sido tomadas pelo governador, conde dos Arcos. Este, se por um lado proibira totalmente "as danças que os negros costumam fazer ao som de instrumentos estrepitosos, e desentoados nas ruas e largos desta cidade", por outro não impedira que os escravos se juntassem nos dois largos da Graça e do Barbalho, podendo aí dançar "até o toque das Avé-Marias". Esta permissão levava em conta o facto de que "muitos senhores reconhecem a necessidade, e vantagem de diminuir os horrores de cativeiro, permitindo que seus escravos se divirtam, e que de dias em dias se esqueçam por algumas horas do seu triste estado".

Estas medidas tolerantes do governador consternaram alguns brancos assustados com as mortes recentemente ocorridas e com as casas incendiadas. Respondendo em parte a uma frase do governador na sua ordem do dia ("em todas as cidades policiadas do mundo se permitem divertimentos públicos proporcionados até às últimas classes da nação"), diziam não se dever permitir aos negros "divertimentos tão profanos em dias de descanso, e dedicados ao culto do verdadeiro Deus" quando muitos brancos, como os soldados e caixeiros, não tinham domingos nem dias santos, "aplicados sempre nos serviços" ou em guardas e rondas.

Todos os males então ocorridos provinham não só dos batuques mas também de se ter permitido aos negros "andarem com vestimentas de rei, coroando-se com espetáculos, e aparatos, fazendo uns aos outros tais, e quais homenagens e ajuntamentos com caixas de guerra amotinando a cidade".

Passado o susto com o levante dos negros, as diversões destes continuaram a ter lugar nos espaços públicos das principais cidades.

NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Vida privada e quotidiano no Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 274-5, 278-80.

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