"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Um poema de Neruda

O jovem mendigo, Bartolomé Esteban Murillo

Regressa de seu fogo o foguista,
de sua estrela o astrônomo,
de sua funesta paixão o enfeitiçado,
do número milhão o ambicioso,
da noite naval o marinheiro,
o poeta regressa da espuma,
o soldado do medo,
o pescador do coração molhado,
a mãe da febre de Joãozinho.
o ladrão de seu vértice noturno,
o engenheiro de sua rosa fria,
o índio de suas fomes,
o juiz de estar cansado e não saber,
o invejoso de seus sofrimentos,
a bailarina de seus pés cansados,
o arquiteto do piso três mil,
o faraó de sua décima vida,
a prostituta de seu traje falso,
o herói regressa do olvido,
o pobre de um só dia a menos,
o cirurgião de mirar a morte,
o boxeador de seu triste contrário,
alguém regressa da geometria,
volta o explorador de seu infinito,
a cozinheira de seus pratos sujos,
o romancista de uma rede amarga,
o caçador apaga o fogo e volta,
a adúltera do céu e naufraga,
o professor de uma taça de vinho,
o intrigante de sua punhalada,
o jardineiro fechou sua rosa,
o taberneiro apaga suas bebidas,
o presidiário junta a sua defesa,
o açougueiro lavou suas mãos,
a monja cancelou suas orações,
o mineiro seu túnel escorregadio,
e como todos eles me dispo,
faço da noite de todos os homens
uma pequena noite para mim,
aproxima-se minha mulher, faz-se o silêncio
e o sono volta a dar a volta ao mundo.

NERUDA, Pablo. Teus pés toco na sombra: e outros poemas inéditos. Rio de Janeiro, José Olympio, 2015. p. 111 e 113.

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