"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Brinquedo perigoso

O restaurador, William Hemsley 

“Diga-me com o que brincas e dir-te-ei quem és.” Aproveito o mote para falar mal de Barbie, boneca feita, por incrível que pareça, em uma fábrica de brinquedos dirigida por uma mulher e introduzida nos Estados Unidos por outra. São 29 centímetros de plástico que contém a desmesura do mundo. O modelo incomoda, tanto mais quanto conhecemos a história das bonecas. Encontradas em tumbas egípcias ou em ruínas romanas, as pequenas miniaturas tiveram, por muito tempo, sentido mais religioso do que lúdico. Foi em finais do século XVII, que a preocupação com a educação feminina levou, na Europa, à valorização das primeiras bonecas. Na forma de bebês, elas deviam incentivar os cuidados com a prole, reproduzindo os valores familiares. Brincar de boneca foi, até ontem, um exercício para desenvolver os instintos maternos. Bons tempos em que as bonecas tinham sentido educativo.

Qual o sentido de um arquétipo plastificado em pin-up loura, fria como as neves do norte europeu, num país de mestiços, afogados em suor? Nada além de sublinhar o modelo da juventude americana numa sociedade que já engole lixo cultural suficiente, vindo dos Estados Unidos. Para começar, trata-se de impor um estilo de vida “cor-de-rosa” a toda uma geração de meninas, na sua maioria, pobres: roupas, jóias, maquiagem, tudo de mais supérfluo e descartável. A boneca traduz a ideia de que a mulher deve ser tão improdutiva quanto dispendiosa. Seus saltos altos parecem martelar impiedosamente a necessidade de opulência, de despesas desnecessárias, sugerindo ao mesmo tempo a exclusão feminina do trabalho produtivo e, por conseguinte, a dependência financeira do homem. Nossas filhas são precocemente empurradas para o mundo da riqueza. Barbie ensina-lhes a serem consumidoras e consumíveis pelos homens. Na interação da boneca com a criança, a atenção dada ao aspecto exterior reforça a ideia de que a beleza física é a chave da popularidade e, consequentemente, da felicidade: pernas longas, cintura de pilão, traços delicados, cabelos sempre lisos e louros, seios fálicos como foguetes. Preciso lembrar quantas meninas ficam absolutamente frustradas por não serem assim?

O universo de Barbie, sua casa, seu guarda-roupa, seu carro etc. remete à imagem de uma sociedade que é microcosmo de competição e comparação. Seu mundo é feito de valores materiais, do culto ao dinheiro, das compras sem fim. A caricatura étnica da boneca “morena” só faz acentuar o ideal normativo, em que os traços raciais e outros atributos são apagados. Christie, a amiga negra, não representa a diferença, mas alguém que, diante da loura, está fora da norma. Norma que só satisfaz, sublinhe-se, no narcisismo, no cuidado com a aparência, numa feminilidade sem falhas. Pior: Barbie faz pensar numa geração de mulheres clonadas, perfeitas, incompatíveis com a realidade social, o que, do ponto de vista da ilusão, deve confortar muita mãe inconseqüente.

Falo mal da Barbie para lembrar a mães, educadoras, psicólogas e professoras que somos responsáveis pela construção da subjetividade de nossas meninas. Mas a futilidade de Barbie não exclui a sua utilidade de lembrar-nos que temos de lutar por valores melhores do que o dinheiro ou de desejarmos para nossas filhas outra coisa que tornar-se simples mulheres-objeto.


DEL PRIORE, Mary. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 46-7.

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