"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Estruturas mentais dos homens na Idade Média

Que estruturas mentais possuíam os homens da Idade Média? De que maneira viam o mundo ao seu redor? Quais eram seus sonhos, medos, esperanças, angústias, crenças? O que eles imaginavam? [...]

A primeira característica importante das estruturas mentais do homem medieval foi a religiosidade. [...]

O mundo para os homens do Ocidente medieval tinha um caráter ameaçador e inseguro: uma natureza da qual dependiam, em regra hostil, mas que não era explicada cientificamente; doenças que não sabiam combater; a presença quase constante da fome e da carestia; o medo do desconhecido. Por isso, o mundo sobrenatural adquiriu uma força significativa nesta sociedade, onde o universo era visto como funcionando a partir da ação das forças do bem e do mal. Ou seja, Deus e o diabo estavam em todas as partes, em todas as manifestações concretas da vida: as boas dádivas - colheitas fartas, clima favorável às plantações, fertilidade da terra, vitórias em guerras - eram signos da presença divina atuando. Mas, quando o diabo se fazia presente, o mal se abatia sobre os homens: más colheitas, tempestades, secas, derrotas etc.

Não era possível para este homem compreender o mundo de outra forma. Esta dualidade estava manifesta em todos os momentos. Para que o homem estivesse sempre sob as influências divinas, ele deveria desenvolver sua espiritualidade através de obras positivas aos olhos de Deus como forma de combate às forças do mal e às influências diabólicas.

As armas para enfrentar esta batalha constante no cotidiano difícil da vida na Idade Média feudal foram dadas pela Igreja: orações, exorcismos, sacramentos, amuletos protetores.

[...]

Uma das figuras mais importantes do universo mental do Ocidente medieval foi o diabo, que neste momento ganhou uma força significativa. Concebido na tradição cristã como anjo decaído, portanto teoricamente submetido ao poder de Deus, a quase onipotência de satã acabou por preponderar nos discursos dos teólogos na Baixa Idade Média. Foi a partir do ano 1000 que ele passou a ser representado no imaginário cristão. Representação animalesca, hostil, monstruosa, correspondente aos medos de fim de milênio, que assolaram o Ocidente medieval.


Santa Juliana e um demônio. Ca. 1170-1200, Artista desconhecido. 

A partir do século XI, foi representado como um homem animalizado, com presas, chifres, orelhas pontudas, asas de morcego, e, a partir do século XIII, com cauda, corpo peludo, garras. Foi atribuída a ele uma intensa atividade sexual, com a possibilidade de fecundar mulheres, e uma inteligência ímpar, podendo influenciar e agir sobre o espírito humano e sobre a matéria. Os homens imaginavam-no assumindo diferentes formas: assaltava homens adormecidos, sob o aspecto de mulheres bonitas, ou então como homens, como santo ou como o próprio Cristo, quando tentava as religiosas.

O diabo também era imaginado como provocador de ódios, pesadelos, selando pactos com os homens, provocando tentações da carne, do dinheiro, do poder, e era inspirador de práticas mágicas, duramente condenadas pela Igreja.

A partir do século XIII, se consagrava a majestade de satã. Sua existência e sua nefasta influência era tão certa que Santo Tomás de Aquino afirmou que "a fé verdadeiramente católica determina que os demônios existem e que podem causar dano mediante suas operações". Sua imagem era quase imperial, e associada ao mau poder: sentado de frente, com cetro, coroa, trono, soberano na sua corte de demônios.

Ao longo de todo este período, dominou a concepção de que o diabo era o príncipe dos pecadores: o pecado original de Adão e Eva levou o homem a se submeter ao poder do demônio. Mas Cristo anulou com seu sacrifício o direito que o diabo tinha sobre a humanidade, levando o homem novamente para perto de Deus. Estava formado então o embate entre estas duas forças, e os inimigos da Igreja eram vistos como seguidores do diabo: os pagãos, os muçulmanos, os judeus, os hereges, os feiticeiros, os pecadores.

Entre os espaços possíveis do mundo do Além, para onde iam as almas dos homens após a morte - o paraíso e o inferno -, surgiu, na segunda metade do século XII, um terceiro espaço, o do purgatório. Dependendo do tipo de pecado e das condições da morte do indivíduo, à sua alma era vetada a entrada imediata para o inferno, indo assim para esta "sala de espera", o purgatório, na tentativa de se purificar e poder alcançar o paraíso.

Local menos terrível que a morada do diabo, as almas poderiam diminuir seus dias de purgação em função de orações, missas, penitências, peregrinações e oferendas depositadas em sua intenção. A inauguração deste novo espaço do tempo da Igreja fazia crescer imensamente o seu poder, cuja ajuda era fundamental no encaminhamento satisfatório de cada alma para o paraíso. [...]

A noção de contratualidade também marcou a mentalidade medieval. Essência das relações sociais no feudalismo, o contrato pessoal [...] se transpôs para as relações dos homens com Deus, criando entre eles vínculos hierárquicos recíprocos. Deus conferiu vida aos homens, que tinham por dever combater seu maior inimigo e traidor, o diabo, bem como os seus seguidores, como prova de fidelidade. O homem era vassalo de Deus, portanto devia se conduzir como tal, servindo-o de várias maneiras: peregrinando a lugares sagrados, cultuando relíquias, adorando santos, combatendo pecadores e hereges, e combatendo, por meio das Cruzadas, os usurpadores da cidade sagrada de Jerusalém.

[...]

Os homens da Idade Média estiveram muito mais propensos a escutar do que propriamente a ver. Acreditavam nos relatos fantásticos daquele mundo que abrigava seres escandalosos e monstruosos, humanos ou animais, e que assim povoaram a sua imaginação, a exemplo dos mitos do paraíso terrestre, do reino de Gog e Magos, ou mesmo do Preste João. [...]

CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 111-8.

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