"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Os manicuros de Sakara

A imagem mais antiga de um casal homossexual encontrada no túmulo de dois manicuros da V dinastia: Niankh-Khnum e Khnum-Hotep. Pintura mural numa mastaba de Sakara, datada de cerca de 2450 a.C.

Segundo parece, o incesto não era o único tabu ancestral que se desprezava nos palácios reais de Tebas ou de Mênfis. É provável que certos serviços cortesãos, como o de cabeleireiro, maquilhador ou manicuro fossem exercidos por homens homossexuais (o que explicaria o seu [...] vínculo aos ritos funerários, na delicada função de limpar os cadáveres embalsamados). Em 1964, houve um achado nas ruínas da necrópole de Sakara que contribuiu decisivamente para reforçar esta hipótese. O arqueólogo egípcio Ahmed Moussa dirigia uns trabalhos nas proximidades da pirâmide de Unas, quando descobriu uma série de passagens funerárias escavadas numa encosta escarpada. Informou da descoberta o seu superior, o professor Mounir Basta, que entrou de gatas por uma das estreitas passagens. Quase à beira de desfalecer, foi dar a uma câmara mortuária com um fresco pintado no único muro não desmoronado. A pintura mostrava dois homens jovens olhando-se de perfil, com os narizes a tocar-se, as bocas muito próximas. Um deles apoiava afectuosamente uma mão no ombro do outro, que por sua vez lhe pegava no pulso oposto. O arqueólogo-chefe decidiu chamar "Os irmãos" a tão valiosa descoberta.

Mas, quando reparavam o caminho que levava à pirâmide, os trabalhadores desenterraram uma série de placas murais com inscrições e desenhos de estilo semelhante ao de "Os irmãos". Ao terminar os trabalhos, Basta e Moussa contavam com material suficiente para reconstruir quase por completo o que era uma mastaba, um túmulo em forma de pirâmide truncada. As numerosas pinturas estavam em relativo bom estado e os frisos com hieróglifos quase intactos. Os arqueólogos puderam, assim, concluir que o sepulcro tinha sido construído por volta do ano 2450 a.C., durante a V dinastia, por ordem de um servidor do faraó Niuserré chamado Niankh-Khnum que, conforme explicava uma inscrição por baixo do revelador fresco, era "chefe dos manicuros no palácio real". A construção estava destinada a ser o seu próprio túmulo, repartido com o seu colega e amigo íntimo Khnum-Hotep, que era o outro rapaz que o olhava de perfil. Além disso, a inscrição do frontispício reunia os nomes de ambos em Niankh-Khnum-Hotep, que significa algo como "unidos na vida e na morte".

O professor Basta começou a pensar que talvez se tivesse equivocado ao atribuir o abraço dos jovens ao afecto fraternal. Confirmou a sua suspeita comparando o desenho com as figuras que apareciam no próprio túmulo e com outras da mesma época. Em todas elas, a atitude carinhosa que os manicuros demonstravam correspondia à dos casais unidos pelo casamento, cujos membros eram também os únicos que se olhavam tão próximos um do outro. As figuras masculinas que representavam irmãos ou companheiros nem sequer se tocavam e mantinham o estilo hierático próprio da arte egípcia: o tronco de frente e a cabeça e as pernas de perfil, orientadas no mesmo sentido.

A imagem de Niankh-Khnum e Khnum-Hotep percorreu o mundo como a mais antiga representação artística de um casal homossexual e, desde então, a mastaba de Sakara tem sido visitada por milhares de turistas das mais variadas procedências e tendências.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 27-8.

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