"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: o confronto entre a moral católica e a moral germânica

Cena de abuso, Ambrogio Lorenzetti

Nos séculos que se seguiram à queda do Império Romano [...], a Igreja esteve empenhada em converter os povos bárbaros ao cristianismo e em estabelecer alianças com os novos donos do poder: os chefes guerreiros, a nobreza bárbara, os reinos que se formavam.

Entre os germânicos, assim como entre os romanos, o casamento situava-se praticamente fora da esfera religiosa, era muito mais civil. Significava um pacto conjugal e obedecia a uma série de formalidades. Seu principal sentido para a nobreza germânica era o de estabelecer alianças entre parentelas. O pacto conjugal mais ligava famílias do que indivíduos.

O auge da aliança Estado bárbaro-Igreja se deu na época carolíngia (séculos VIII e IX), marcada pela estreita cooperação entre o poder temporal e o poder espiritual. Essa aliança [...] fortaleceu a Igreja e a monarquia.

[...]

Os monarcas francos, sagrados pela Igreja, se sentiam na obrigação de implantar na sociedade os ensinamentos cristãos enunciados pelos bispos [...]. O senso de realidade das autoridades eclesiásticas e temporais levava a uma visão do casamento mais próxima da de Santo Agostinho do que da de Santo Ambrósio. Nada se ganharia condenando o casamento e o sexo de maneira radical. Para a ordem pública, o melhor seria moralizar o casamento.

No pensamento medieval, o mal vem do sexo, mas é possível atenuá-lo pela penitência. Os cônjuges deviam ficar afastados um do outro durante o dia, nas noites que precedem os domingos, nos dias de festas e solenidades e nas quartas e sextas-feiras. A abstinência sexual devia ocorrer também em determinados períodos do ano, como, por exemplo, na quaresma.

Acrescentam-se ainda as três noites após o casamento, o período menstrual, os três meses antes do parto e os quarenta dias após o nascimento dos filhos.

[...]

[...] Por isso não se deve casar por luxúria, mas para procriar. Se a procriação é a finalidade das relações sexuais, a virgindade deve ser guardada até as núpcias, e os que têm esposas não devem ter concubinas. O marido deve respeitar sua mulher e honrá-las como a um ser fraco. Deve também se abster dela quando estiver grávida. A mulher não deve ser expulsa de casa, nem se deve tomar outra. O incesto é pecado grave,

Monogamia, exogamia e repressão ao prazer são os pontos centrais dos ensinamentos.

Apesar desses ensinamentos, nessa fase a Igreja não havia ainda firmado o seu direito de ditar regras para a sociedade no que se refere ao casamento. De acordo com os costumes germânicos e mesmo com a tradição cristã, ele sempre havia sido considerado uma instituição social derivada da lei natural, não das leis sagradas. Os rituais do casamento eram civis e profanos, não religiosos. Era isso que a Igreja queria mudar.

[...]

A desagregação do edifício político que se seguiu ao período carolíngio criou um clima de insegurança. O poder se descentralizou, tornando mais difícil a aliança entre Igreja e nobreza.  Essa desagregação estimulou a reflexão dos homens da Igreja [...].

Esses pensadores procuraram recolher na tradição cristã os elementos para uma nova ação da Igreja, que pretendia combater as violências e atenuar o espírito turbulento da nobreza. [...]

Nessa nova ação, o casamento deveria ser, sobretudo, uma forma de repartir pacificamente as mulheres. Daí a preocupação com dois fatores de violência: o rapto e o divórcio.

Mas, mesmo com essa preocupação do clero, o casamento permanecia sob a jurisdição civil. Não havia uma liturgia matrimonial cristã. [...]

Essa moral cristã em muitos pontos estava de acordo com a moral da elite guerreira germânica sobre o casamento. Ambas concordavam, por exemplo, com a submissão da mulher ao homem, os perigos representados pela sexualidade feminina, a condenação do rapto... A honra de uma família nobre dependia em larga medida da conduta das mulheres, e nisso a Igreja podia prestar importante auxílio.

Em outros pontos, porém, como a condenação cristã do adultério e do incesto, essas duas morais não se harmonizavam.  [...]

A condenação do que a Igreja chamava de adultério contrariava a prática comum da concubinagem entre a nobreza.

Entre os francos, além do casamento legítimo, longamente acertado entre as famílias, o qual garantia a sucessão do patrimônio e dos títulos, havia outros tipos de união. Existia um casamento de segunda categoria, que servia para disciplinar a sexualidade dos rapazes nobres. Era uma união temporária, que podia ser desfeita diante da possibilidade de um casamento mais vantajoso. Neste casamento de segunda categoria, a mulher era mais emprestada do que dada, embora isso fosse feito solenemente, através de um contrato.

Além desse tipo de casamento, era comum a concubinagem, que resultava em um grande número de herdeiros de segunda classe e de filhos bastardos. [...]

A esposa legítima tinha como principal papel garantir a "perpetuação do sangue" e do patrimônio de uma família nobre. Se ela não concebesse herdeiros masculinos, isso já seria motivo mais que suficiente, aos olhos da nobreza, para um novo casamento.

[...] Os casos de incesto listados pela Igreja eram numerosos. As proibições iam até o sétimo grau de parentesco. O parentesco por afinidade também criava impedimento ao casamento, como o de padrinho com afilhada, entre cunhados etc.

Considerava-se que a valentia dos antepassados era transmitida pelo sangue. Daí o cuidado em escolher a esposa, pois dois sangues seriam misturados. Era preferível, então, que a esposa fosse aparentada ao marido. As rigorosas leis da Igreja proibindo o incesto impediam esse tipo de casamento.

Por outro lado, as leis extremamente severas de incesto acabavam neutralizando a proibição do divórcio. [...]

[...]

A tentativa de cristianização do casamento teve uma forte resistência da nobreza porque feria valores e interesses fundamentais dessa classe. Ao que parece foi mais fácil cristianizar o casamento nas camadas inferiores da sociedade, ou seja, entre pessoas que pouco possuíam. O casamento e o comportamento sexual recomendados pela Igreja substituíram as formas mais profanas de acasalamento e a concubinagem.

[...]


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 225-228.

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