"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: as ideias da Igreja sobre a mulher

Uma jovem dama da moda, Paolo Uccello

A doutrina da Igreja medieval sobre o casamento baseava-se em ideias que foram se desenvolvendo dentro da própria Igreja ao longo de sua história. Sob influência da tradição e dos desafios de cada momento, essas ideias iam sendo renovadas e atualizadas.

A renovação católica iniciada com o papa Urbano II, no final do século XI, produziu uma atualização das ideias sobre a mulher. Do final do século XII ao final do século XV, os textos que tratavam da mulher, do casamento e da sexualidade se multiplicaram. Eles revelam a necessidade que os homens da Igreja sentiram de impor valores e modelos de comportamento à mulher.

Muitas mulheres tinham participado de movimentos heréticos, e também era grande o número das que entravam para as ordens religiosas. Algumas escreveram sobre seus ideais religiosos. Isso despertou a atenção do clero.

Na nova economia que se esboçava nessa época, principalmente com o crescimento do comércio e da vida urbana, as mulheres participavam como produtoras e vendedoras de bens. Mas elas eram vistas apenas como mães, filhas e esposas.

Definir claramente os papéis sociais femininos foi um dos objetivos principais dos homens da Igreja. Eles estavam empenhados em restituir a palavra de Deus, vale dizer, a autoridade do clero, onde ela se achava ameaçada. Os pregadores preocupavam-se com uma espécie de desleixo intelectual e moral, que emanava principalmente das cidades.

Ao falar às mulheres, os homens da Igreja não identificam claramente as destinatárias. Dirigem-se às nobres, às camponesas ou às habitantes da cidade? Aparentemente a todas as mulheres, não importando a posição sexual.

Nota-se, entretanto, um esforço de classificação ao qual não estavam acostumados. A tentativa de classificação oscilava entre a categoria social, o tipo de atividade, a idade etc. Assim, temos as virgens, as casadas e as viúvas. As esposas e as mães. As monjas e as servas. As moças, as mulheres jovens, as de meia idade e as velhas. As mulheres pobres e as prostitutas.

Os discursos têm como eixo a oposição entre o que as mulheres eram e o que deveriam ser. Não podemos esquecer que são discursos de clérigos. Além de serem homens falando sobre mulheres, estavam submetidos às regras do celibato e da castidade. Tendiam a ser tanto mais severos na censura da sexualidade, principalmente da feminina, quanto mais dela estivessem afastados.

Para esses pregadores, as mulheres das categorias sociais superiores eram portadoras, ou deveriam ser, de valores mais elevados. Esperava-se que elas servissem de exemplo para as camadas subalternas e tomassem consciência dos seus altos deveres como nobres. As mulheres pertencentes a categorias sociais mais baixas foram vítimas das principais condenações morais nestes discursos.

Quando a mulher é referida sem a identificação do grupo social ao qual pertencem, aparece como uma criatura de extremos entre o bem e o mal: é a filha de Eva ou a virgem que imita Maria.

Mas, independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico. A única que não pertence a ele é a prostituta, à qual só resta o arrependimento e a penitência.

Os textos mais impressionantes são os que falam sobre as mulheres, e não para elas. Eles demonstram claramente o grande medo que elas despertavam. O medo da mulher é uma das principais características do pensamento medieval. Esse medo levava a um severo controle sobre as mulheres. Controlar e castigar as mulheres era uma tarefa dos homens.

Como há um predomínio do espírito sobre a carne, a pureza seria mais de pensamento do que do corpo, mas na hierarquia da castidade, a virgem de corpo está em primeiro lugar.

Foram estabelecidos, então, três graus possíveis de castidade, de virtude e de perfeição. O ideal de mulher é a virgem que renuncia para sempre ao sexo. As viúvas que renunciam a ele por haverem perdido o marido e não se casam estão em um segundo plano. As casadas, que usam o sexo de forma casta e moderada com a finalidade de procriação, estão em terceiro lugar na escala dos méritos. A castidade vale mais do que a continência.

[...]

Até a sua presença na missa seria arriscada, pois os seus olhares poderiam "incendiar os lugares sagrados".

Os conhecimentos medievais sobre anatomia confirmavam o juízo depreciativo dos homens da Igreja em relação à mulher. A fisiologia da mulher foi objeto de longos debates. A conclusão era a de que ela trazia no próprio corpo as marcas da sua inferioridade e mesmo dos seus malefícios.

O Gênesis é citado para mostrar que a mulher é um ser secundário, um apêndice do homem. Acreditava-se que os órgãos femininos fossem menos aperfeiçoados e fracos, de certa maneira opostos aos masculinos. O corpo da mulher foi considerado com base no modelo masculino e os seus órgãos, classificados de acordo com a finalidade. Os seios, por exemplo, eram vistos apenas pela sua finalidade de aleitamento.

No pensamento medieval, o matrimônio era enfocado na sua finalidade de procriação. Por isso não se falava do prazer sexual, mesmo dentro do casamento. Dessa forma, não existiram no Ocidente cristão condições para o desenvolvimento de uma verdadeira arte erótica.

Ao mesmo tempo, os discursos revelam o medo de um saber feminino sobre o sexo. Saber sempre envolvido em mistério e sempre suspeito de origem demoníaca. Tinha-se medo da mulher durante a menstruação e das que deixaram de menstruar.

As velhas eram consideradas particularmente perigosas. Pensava-se que elas conheciam os segredos do sexo e induziam as mulheres mais jovens ao pecado.

A mulher era vista como um tesouro a ser protegido e preservado, pois era fácil de se perder. Daí a necessidade de reprimir, vigiar e enclausurar. Deus é a cabeça de Cristo; Cristo é a cabeça do homem; o homem é a cabeça da mulher.

As mulheres que desejavam roupas cada vez mais bonitas e caras preocupavam os pregadores. Eles achavam que esse cuidado com a aparência e com o corpo se aproximava da idolatria. A maquiagem e os enfeites foram insistentemente condenados.

Apesar de afirmarem que a mulher devia ser protegida, os pregadores diziam que ela precisava ter autocontrole. Aconselhavam-na a não se divertir muito, a mostrar-se orgulhosa, comer pouco, dançar com compostura e mover-se com moderação. Alertavam para o perigo da bebida e do ócio. Contra as tentações, prescreviam o trabalho e a caridade.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 232-235.

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