"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O dia do juízo (Parte 2)

O juízo final (detalhe), Michelangelo

No fim de uma acentuada curva na estrada, o Castelo de Albey surgiu à sua frente, imenso e sombrio. Estava tudo exatamente como ele se lembrava. Mais umas duas horas de caminhada e chegariam lá.

Para chegar ao castelo teriam que passar próximo à Abadia de Louvenne. Quanto mais se aproximavam, mais Filipe notava que havia ali uma movimentação anormal.

Seguiam seu caminho quando escutavam o barulho de cascos batendo no chão. Assim que avistaram o cavaleiro, Filipe percebeu pelas roupas e ornamentos quem era e de onde vinha.

Ao avistar aquele bando de homens andrajosos e enlameados, de aspecto ameaçador, o cavaleiro tentou recuar, mas já era tarde. Percebeu que havia sido cercado. O aspecto deles não deixava dúvidas: eram saqueadores.

- Não me matem! Eu entrego tudo o que trago comigo!

- Somos muitos e a fome é muito grande. O que traz consigo não é suficiente. Se quer viver dia o que se passa na abadia!

- É uma grande festa. A abadia foi reformada e hoje comemora-se a conclusão das obras, que duraram mais de trinta anos.

- Quem é o abade?

- Samuel Garbois é seu nome. É um homem muito velho e bondoso, que viveu para glorificar Deus com essa obra.

- Às custas de milagres ocorridos no Castelo de Albey há muitos anos, não estou certo?

O outro olhou espantado para aquele que assim lhe falava e que parecia ser o chefe do grupo.

- A história de meu querido irmão, morto há dez anos, tem-se espalhado por fronteiras que não imaginávamos. Sim, foi um verdadeiro milagre, e lamentamos muito a perda de Filie, esse era seu nome. Nasceu marcado para grandes obras, mas a vida o arrebatou muito cedo.

- A grande obra de Filie ainda nem começou, meu caro Francisco, e se lamenta tanto a morte do irmão, por que não procurou salvá-lo dos saqueadores que invadiram o castelo há dez anos, por que não pagou o resgate que exigiam para devolvê-lo, ao invés de abandoná-lo à sua própria sorte? - disse Filipe, afastando o cabelo da testa e que encobria seu sinal de nascença.

- Meu irmão! Então você ainda vive?

Francisco estava pálido de morte. Sentiu no olhar do irmão fúria e ódio gelados que lhe arrepiaram o corpo e lhe esfriaram o sangue.

Filipe não vacilou, e sua mão estava bem firme quando cravou sua espada bem na altura do coração do irmão, antes mesmo que este tivesse tempo de perceber o que acontecia.

Por um momento o silêncio foi total, só sendo cortado pelo barulho da chuva que transformava o vermelho vivo do sangue que corria em vermelho pálido, até se misturar na lama e ser engolido pela terra.

Filipe quebrou o silêncio.

- Se há uma festa na abadia, eu deveria ser o convidado de honra. Vamos, vou reclamar meus direitos.

Seus homens vacilaram. Saquear um castelo, mesmo que fosse a quase inexpugnável fortaleza de Albey, era uma coisa que fariam sem pensar duas vezes. Eram homens duros e desgraçados, que caminhavam dia a dia ao lado da morte, e por esta ser uma presença tão constante não os assustava. Mas saquear uma abadia? Isso eles não poderiam fazer. A abadia era um lugar sagrado, e isso significava ofender a Deus. E se a ira divina se voltasse contra eles? Fazia-os tremer a simples ideia de tormentos inimagináveis que cairiam sobre eles. Não, não iriam.

Estavam acampados próximo à abadia. Filipe pensava exaustivamente numa saída para esse impasse.

Levou instintivamente a mão à testa.

Levantou-se, caminhou com vagar para o centro do acampamento, onde seus homens estavam reunidos em volta de uma pequena fogueira que ameaçava acabar-se a todo instante, pois a chuva prosseguia.

A luz do fogo refletia-se nos olhos de Filipe, que naquele instante parecia terrível e implacável, mesmo a seus homens.

- Trago estampado na testa o sinal sagrado da cruz desde o dia em que nasci. Vocês temem saquear a abadia por ser um lugar sagrado, mas se esquecem de que um sinal divino orienta esta ação. O lugar é sagrado, os homens que o habitam não. Seus atos infames e impuros só têm feito ofender a Deus durante todos estes anos. Cabe a nós, homens escolhidos por Deus, e para provar isso existe o sinal, vingá-lo. Quem se recusa a me seguir se recusa a fazer o que o Senhor ordena. Para esses, os tormentos do inferno estão reservados. Quem quiser me seguir fique de pé, os outros permaneçam sentados.

Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 22-25.

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