"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A pesca nas sociedades indígenas do Brasil

A ênfase nas atividades de pesca também varia de uma sociedade para outra, e são muitas as técnicas utilizadas para a obtenção de peixes. É muito comum, entre os índios do Brasil, o uso de vegetais que têm a propriedade de matar ou atordoar os peixes, como o tingui ou timbó. A pesca com tais elementos tem de ser de caráter coletivo, visto o trabalho exigido para efetuá-la: os cipós de timbó são cortados e amarrados em feixes; esses feixes são surrados com cacetes e mergulhados continuamente na água, para que fique impregnada pelo suco do vegetal. Entre os índios do alto Xingu, uma barragem é previamente construída para fechar a saída da lagoa ou deter o curso das águas do igarapé, e os meninos batem com varas na água para afugentar os peixes na direção da barragem, onde a concentração do tóxico é maior. Do outro lado da barragem, são colocadas canoas para aparar os peixes que conseguem pulá-la; quando escapam às canoas, são abatidos a flechadas. Entre os craôs, a barragem não é construída; por isso, o ribeirão só pode ser impregnado com timbó na estação seca, quando suas águas são poucas e mansas; uma vez impregnada a água, as famílias vão descendo pelas margens do ribeirão, acompanhando o suco do timbó, que desliza juntamente com as águas. Os peixes, atordoados, imóveis, descem ao sabor da corrente. Mas dificilmente podem ser apanhados com a mão, pois, uma vez tocados, debatem-se e escorregam; são, por isso, fisgados com flechas de ponta de osso ou simplesmente de pau-roxo, pois estas se prendem no peixe. [...] A flecha, uma vez fisgado o peixe, flutua com ele e é apanhada com a presa pelo pescador. Os peixes podem ser abatidos também a golpes de facão e depois apanhados com a mão.

Família de botocudos atravessando um rio, Maximilian zu Wied-Neuwied


Quando as águas são claras e mansas, é possível fisgar os peixes com flechas, sem auxílio de entorpecentes, sendo que o pescador os espera nos lugares mais propícios, como, por exemplo, no alto de uma árvore cujos galhos estejam por sobre as águas e cujos frutos sejam apreciados pelos peixes.

Há também armadilhas que podem ser utilizadas na pesca. Os índios teneteharas, por exemplo, possuem vários tipos. Um deles é o pari; trata-se de um cesto cilíndrico, totalmente fechado numa extremidade e, na outra, há uma abertura afunilada que permite a entrada do peixe, mas não sua saída; é colocado no fundo dos igarapés, com uma isca no interior. Uma outra armadilha usada pelos mesmos índios é o mororó, também um cesto cilíndrico, mas com as duas extremidades abertas, sendo que a inferior termina em pontas aguçadas; é usado em águas rasas, sendo fincado no leito da corrente no momento em que passa um cardume, retirando-se os peixes pela abertura superior. Uma terceira armadilha, chamada igualmente pari, constitui-se de uma esteira de talos, amarrados um ao lado do outro, tendo pontas aguçadas na parte que deve tocar o fundo do igarapé. A cerca, flexível, é fincada no meio do igarapé à moda de labirinto, sendo feita uma barragem entre as margens do igarapé e o pari, para induzir os peixes a entrar no labirinto. Os índios do rio Uaupés, afluente do rio Negro, também dispõem de armadilhas para a pesca. Uma delas é o mesmo pari de boca afunilada dos índios teneteharas. Outra, o cacuri, é constituído por um cercado de varetas com uma abertura que cede quando o peixe a força. Mas torna a fechar-se pela pressão da corrente da água; Uma terceira armadilha é o cajá, isto é, um jirau construído junto às pequenas quedas de água, de tal modo que apare os peixes que tentam galgar a cachoeira ou segure os que são trazidos por ela.

Índio do rio Uaupés, Décio Villares


Em inúmeras sociedades indígenas, atualmente, é muito comum o uso de anzóis de metal introduzidos pelos civilizados. Em algumas, tais como as do Uaupés, o peixe pode ser conservado moqueado, isto é, assado e defumado em fogo lento sobre uma grelha de madeira posta cerca de um metro do fogo. Fazem também a farinha de peixe, pisando o peixe moqueado no pilão, levando-o, em seguida, ao forno, onde é esfarinhado com a mão, até ficar completamente enxuto. O peixe moqueado ou em forma de farinha conserva-se durante muito tempo. Os antigos tupinambás do litoral brasileiro faziam tanto o moquém como a farinha de peixe.


MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 97-9.

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