"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 14 de abril de 2017

O grande medo: o pânico vermelho

"Haverá uma matança; nós não vamos nos esquivar; terão que acontecer assassinatos; nós mataremos porque é necessário; nós vamos destruir para livrar o mundo das suas instituições tirânicas."

Manifesto anarquista, 1919, EUA

Em 1919, chocados com a onda de atentados a bomba que se espalhou pelo país, promovida por anarquistas e outros simpatizantes comunistas, os cidadãos norte-americanos aceitaram que uma série de direitos e liberdades fossem momentaneamente suspensos ou limitados. Permitiram que o procurador-geral Mitchel Palmer agisse com mão de ferro na captura dos esquerdistas, prendendo-os em massa ou banindo-os da América. Tal como passou a ocorrer a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, muitas das prerrogativas individuais dos norte-americanos começaram a ser desconsideradas em vista do clima de insegurança que pairou sobre a nação. Mas como indica a própria história e como os acontecimentos do passado mostraram, as infrações aos direitos lá são sempre temporárias, rápidas como uma chuva de verão.

Cartoon político, 1919. 
Alley

Nem bem Ethel Williams, a secretária de um senador sulista, abriu o pacote, o conteúdo explodiu-lhe no seu rosto. Perdeu os braços, e a vida por muito pouco também não se foi. Era o dia 1º de maio de 1919, data memorável, escolhida pelos anarquistas para darem início à sua grande ofensiva de primavera-verão contra o estado norte-americano. Trinta dias depois, no 2 de junho, foi o próprio procurador-geral da república, A. Mitchel Palmer, homem de confiança do Presidente W. Wilson, quem teve parte da sua casa em Washington atingida por um outro petardo. "Pois bem", teria dito Palmer, "se gostam tanto de Lenin e de Trotsky, vou mandar todos eles para lá."

A casa do procurador-geral A. Mitchell Palmer, depois de ser bombardeado por Galleanist Carlo Valdinoci.
Fotógrafo desconhecido

Entrementes, os Estados Unidos inteiros tremeram. Greves e motins raciais em Chicago tinham como pano de fundo um festival de explosões em Boston, em Nova York e mais seis outras grandes cidades americanas. Os acontecimentos pareciam ter fugido do controle. A vitória dos bolcheviques na Rússia, seguida da derrota dos exércitos contra-revolucionários, acendera a luz verde para toda a esquerda norte-americana. Alucinados, acreditaram que era possível reproduzir na América as jornadas de Petrogrado e de Moscou, onde os guardas vermelhos levaram tudo de roldão. Se bem que a esquerda pró-soviética em geral apostasse nos movimentos de massa, apoiando a formação de sindicatos e o sufrágio feminino (recentemente aprovado), eram os anarquistas quem lideravam os desatinos.

Cinco policiais e um soldado com rifle na comunidade de Douglas, Chicago, durante a revolta de 1919. 
Foto Chicago Daily News

Numa só batida, a polícia encontrou 38 bombas. O temor impregnou a sociedade americana; o Red Scare, o Pânico Vermelho, tomara conta dos espíritos. Não demorou muito para que Palmer concentrasse enormes poderes. Se bem que o Congresso tivesse rejeitado uma legislação que fixava em vinte anos de prisão e pena para quem atentasse contra instituições americanas, estabelecendo ainda uma multa de vinte mil dólares para quem atacasse prédios públicos, Palmer, em sua ofensiva, infringiu a I, a IV, a VI, a VIII, a IX e a XIV emendas. As tão celebradas garantias individuais, orgulho maior dos americanos, logo viraram letra morta. A polícia de Palmer, reforçada pela contratação do jovem Edgar J. Hoover, que mais tarde seria o mandão do FBI, não se embaraçava por nada. Portas arrombadas, invasões ilegais, tiros para todos os lados, detenções arbitrárias - não houve o que os caçadores de comunistas e anarquistas não infringissem. O procurador-geral não queria perder tempo em distinguir quem era um esquerrdista ativo ou não. Prendeu todos. Legalmente amparado nos porretes jurídicos do Spionage Act de 1917 e no Sedition Act de 1918, num só dos seus Palmer Raids, um arrastão policial feito no dia 7 de novembro de 1919 para "comemorar" o segundo aniversário da revolução russa de 1917, levou dez mil para as cadeias. Foi a maior detenção em massa ocorrida na história dos Estados Unidos em tempos de paz. No ano seguinte, em janeiro de 1920, chegaram a mais de seis mil os encarcerados. Nenhum deles fora acusado formalmente de nada. Bastava serem suspeitos.

Anarquistas, comunistas e radicais reunidos no porto de Nova York para serem deportados, 1920.
Fotógrafo desconhecido.

Pessoas comuns foram sentenciadas a vários meses de cadeia por delito de opinião, tal como elogiar Lenin numa conversa de bar. Algo até então inédito no país. Mas a mão do xerife Palmer não abateu apenas a esquerda. Como a maioria dos anarquistas eram imigrantes italianos e os comunistas eram de origem judaica, os bairros latinos e judeus foram devastados pela fúria policial, alimentada pela histeria dos cidadãos anglo-saxões. "Carcamanos", "traidores de Cristo" era o que se ouvia em todas as partes. Situação que de alguma forma criou o clima para o célebre caso Sacco-Vanzetti, que logo iria eletrizar os Estados Unidos e o mundo (os dois italianos anarquistas foram acusados de assalto seguido da morte de um policial num crime ocorrido em Boston, em 1920).

Protesto para salvar Sacco e Vanzetti, Londres, Inglaterra, 1921. 
Fotógrafo desconhecido

No porto de Nova York, em dezembro de 1919, 249 esquerdistas pró-soviéticos foram embarcados à força no Buford, um barco de transporte da marinha de guerra. Palmer cumpria a sua promessa. Que fossem para a Rússia. A bordo da "Arca Soviética", como logo a imprensa o denominou, estava a nata da inteligência anarco-comunista daquela época, gente como a líder feminista Emma Goldman, Alexander Berckman, Mollie Steimer e tantos outros. Era o presente de Natal, disse Palmer, que os Estados Unidos mandavam para lenin e seus comparasas. Que fizessem bom proveito dele.

Emma Goldman abordando uma multidão na Union Square, em Nova Iorque, 1916.
 Fotógrafo desconhecido.

Em 1921, a coisa acalmou. Gradativamente os direitos civis foram recuperados, e a ordem constitucional reassumida na sua plenitude. A era louca dos Anos de Jazz começava. O som do trompete e do saxofone, do piano e do banjo tomou conta dos salões de dança. Se bem que a Lei Seca começasse a vigorar em 1920, isto não pareceu ter estragado a festa de ninguém. O Grande Gatsby, o herói de Scott Fitzgerald, abria os salões na sua mansão em Long Island, mandando acender uma luz verde no embarcadouro na esperança de atrair para si a bela Daisy Buchanan. O perigo passara, a vida continuava. Mitchel Palmer, homem de ocasião, não foi adiante com sua carreira política. Pior deu-se com Emma Goldman. Ao ver a terrível máquina que os bolcheviques criaram, testemunha do aplastamento da revolta dos marinheiros anarquistas da Fortaleza do Kronsdat, deixou a União Soviética em 1921, apontando-a como "a maior desilusão da minha vida".

SCHILLINGH, Voltaire. América: a história e as contradições do império. Porto Alegre: L&PM, 2004.p. 151-3.

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